Jó

Recriar como ficção personagens do imaginário religioso é um desafio duplo quando a narrativa vai situá-lo contemporaneamente. Assim foi com o nosso herói, homônimo do Jó bíblico que percorre a sua jornada nos dias atuais, tendo como marco inicial sua festa de despedida do serviço público. Aos 55 anos e depois de 35 anos de trabalho, ele imagina que vai, finalmente, viver a vida que planejara em detalhes, com paz de espírito e conforto.

Essa jornada será o avesso desses planos, a começar pela ocorrência de eventos aparentemente comuns em seu entorno. O sumiço de sua empregada no dia seguinte à sua festa, o caso policial envolvendo uma menina que também desapareceu e a relação conturbada com uma antiga paixão, essas três histórias sacodem a harmonia do seu mundo. Jó não apenas iniciará uma jornada para solucioná-las, mas também será por elas tragado como se alguma ordem transcendente pretendesse conhecer os limites do corpo, mente e alma.

Assim como o Jó bíblico, ele será objeto de uma espécie de estudo sobre o valor da fé, a natureza e alcance da misericórdia, o que constitui a maldade no mundo, a questão da Providência e a própria existência de Deus. Tudo isso convergirá como uma tempestade sobre Jó e exigirá dele, no seu doloroso mergulho interior, uma resposta que explique o sentido da vida. Tal estudo é apenas na aparência o mesmo e antigo interesse do Lúcifer bíblico. O objetivo luciferino é, depois de ir até Deus pedir permissão para penetrar a mente de Jó, desafiá-lo com as perguntas que julga impossíveis de responder sem que o próprio Deus seja condenado na pessoa de Jó.

Escrevemos essa narrativa sem a pretensão de respostas, senão em busca de conversar sem verdades prontas e fechadas em si. Somos, todos nós, um pouco Jó em nossas jornadas. Questionamos a Deus, mergulhamos na dor, sobrevivemos às iniquidades e maldades do mundo, buscamos respostas e sentidos na vida. Creio que o leitor com coragem para empreender, com o nosso Jó, a jornada do herói para conhecer o mundo desse romance, certamente também empreenderá uma jornada interior na busca de algum autoconhecimento e, quem sabe, talvez possa vislumbrar a paz de espírito depois da travessia dessas histórias.

Boa leitura.

Roberto Numeriano

Recife/PE, 18/10/2020.