“Peristilo” – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Peristilo
Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada.
Colhi para escrevê-lo a alma de todas as flores, e dos momentos efêmeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação. Tecedeira, sentei-me à janela da minha vida e esqueci que habitava e era, tecendo lençóis para o meu tédio amortalhar nas toalhas de linho casto para os altares do meu silêncio, e eu ofereço-te este livro porque sei que ele é belo e inútil. Nada ensina, nada faz crer, nada faz sentir. Regato que corre para um abismo-cinza que o vento espalha e nem fecunda nem é daninho – pus toda a alma em fazê-lo, mas não pensei nele fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguém.
E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inútil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer to dar, eu to dou…
Reza por mim o lê-lo, abençoa-me de amá-lo e esquece-o como o Sol de hoje ao Sol de ontem (como eu esqueço aquelas mulheres nos sonhos que nunca soube sonhara).
Torre do Silêncio das minhas ânsias, que este livro seja o luar que te fez outra na noite do Mistério Antigo!
Rio de Imperfeição dolorida, que este livro seja o barco deixado ir por tuas águas abaixo para acabar mar que se sonhe.
Paisagem de Alheamento e de Abandono, que este livro seja teu como a tua Hora e se ilimite de ti como da Hora de púrpura falsa.
Correm rios, rios eternos por baixo da janela do meu silêncio. Vejo a outra margem sempre e não sei por que não sonho estar lá, outro e feliz. Talvez porque só tu consolas, e só tu embalas e só tu unges e oficias.
Que missa branca interrompes para me lançar a bênção de te mostrar sendo? Em que ponto ondeado da dança estacas, e o Tempo contigo, para do teu parar fazeres ponte até minha alma e do teu sorriso púrpura do meu fausto?
Cisne de desassossego rítmico, lira de horas imortais, harpa incerta de pesares míticos – tu és a Esperada e a Ida, a que afaga e fere, a que doura de dor as alegrias e coroa de rosas as tristezas.
Que Deus te criou, que Deus odiado pelo Deus que se fez o mundo?
Tu não o sabes, tu não sabes que o não sabes, tu não queres saber nem não saber. Despiste de propósitos a tua vida, nimbaste de irrealidade o teu mostrar-te, vestiste-te de perfeição e de intangibilidade, para que nem as Horas te beijassem, nem os Dias te sorrissem, nem as Noites te viessem pôr a lua entre as mãos para que ela parecesse um lírio.
Desfolha ó meu amor sobre mim pétalas de melhores rosas, demais perfeitos lírios, pétalas de crisântemos […] cheirosas à melodia do seu nome.
E eu morrerei em mim a tua vida, ó Virgem que nenhum abraço espera, que nenhum beijo busca, que nenhum pensamento desflora.
Átrio só átrio de todas as esperanças, Limiar de todos os desejos, Janela para todos os sonhos, Belveder para todas as paisagens que são floresta noturna e rio longínquo trêmulo do muito luar…
Versos, prosas que se não pensam escrever, mas sonhar apenas.
Tu não existes, eu bem sei, mas sei eu ao certo se existo? Eu, que te existo em mim, terei mais vida real do que tu, do que a própria vida que te vive?
Chama tornada auréola, presença ausente, silêncio rítmico e fêmea, crepúsculo de vaga carne, taça esquecida para o festim, vitral pintado por um pintor-sonho numa idade média doutra Terra.
Cálice e hóstia de requinte casto, altar abandonado de santa ainda viva, corola de lírio sonhado do jardim onde nunca ninguém entrou…
És a única forma que não causa tédio, porque és sempre mudável com o nosso sentimento, porque, como beijas a nossa alegria, embalas a nossa dor, e ao nosso tédio, és-lhe o ópio que conforta e o sono que descansa, e a morte que cruza e junta as mãos.
Anjo, de que matéria é feita a tua matéria alada? que vida te prende a que terra, a ti que és vôo nunca erguido, ascensão estagnada, gesto de enlevo e de descanso?
Farei do sonhar-te o ser forte, e a minha prosa, quando fale a tua Beleza, terá melodias de forma, curvas de estrofes, esplendores súbitos como os dos versos imortais.
Criemos, ó Apenas-Minha, tu por existires e eu por te ver existir, uma arte outra do que toda a arte havida.
Do teu corpo de ânfora inútil saiba eu tirar a alma de novos versos, e do teu ritmo lento de onda silenciosa, saibam os meus dedos trêmulos ir buscar as linhas pérfidas de uma prosa virgem de ser ouvida.
O teu sorriso melodioso indo-se seja para mim símbolo e emblema visível do soluço calado do inúmero mundo ao saber-se erro e imperfeição.
As tuas mãos de tocadora de harpa me fechem as pálpebras quando eu morrer de ter dado a construir-te a minha vida. E tu, que não és ninguém, serás para sempre, ó Suprema, a arte querida dos deuses que nunca foram, e a mãe virgem e estéril dos deuses que nunca serão.
Texto publicado em Livro do Desassossego.
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