“Os Trabalhadores de Estiva” – João do Rio

joao do rio

Os Trabalhadores de Estiva

Às 5 da manhã ouvia-se um grito de máquina rasgando o ar. Já o cais, na claridade pálida da madrugada, regurgitava num vai-e-vem de carregadores, catraieiros, homens de bote e vagabundos maldormidos à beira dos quiosques. Abriam-se devagar os botequins ainda com os bicos de gás acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com bocejos largos. Das ruas que vazavam na calçada rebentada do cais, afluía gente, sem cessar, gente que surgia do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e parava à beira do quiosque numa grande azáfama. Para o cais da alfândega, ao lado, um grupo de ociosos olhava através das frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado aos umbrais de uma porta, lia, de óculos, o jornal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se na frialdade daquele acordar, enquanto dos botes policrômicos homens de camisa de meia ofereciam, aos berros, um passeiozinho pela baía. Na curva do horizonte o sol de maio punha manchas sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lírio, no céu pálido.

Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confusão, via-os vir chegando a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a beira do cais ficou coalhada. Durante a última gréve, um delegado de polícia dissera-me:

– São criaturas ferozes! Nem a tiro.

Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos – de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim, encolhidos, com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia.

Acerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão:

– Posso ir com vocês, para ver?

Ele estendeu também a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as falanges recurvas e a palma calosa e partida.

– Por que não? Vai ver apenas o trabalho, fez com amarga voz.

E quedou-se, outra vez, fumando.

– É agora a partida?

– É.

Entre os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei também. Acostumados, indiferentes à travessia, eles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava a baía. Todo um mundo de embarcações movia-se, coalhava o mar, riscava a superfície das ondas; lanchas oficiais em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas, saveiros, rebocadores. Passamos perto de uma chata parada e inteiramente coberta de oleados. Um homem, no alto, estirou o braço, saudando.

– Quem é aquele?

– É o José. É chateiro-vigia. Passou todo o dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os ladrões são muitos. Então, fica um responsável por tudo, toda a noite, sem dormir, e ganha seis mil réis. As vezes, os ladrões atacam os vigias acordados e o homem, só, tem que se defender a revólver.

Civilizado, tive este comentário frio:

– Deve estar com sono, o José.

– Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e oito filhos precisa trabalhar. Ah! meu senhor, há homens, por este mar afora cujos filhos de seis meses ainda os não conhecem. Saem de madrugada de casa. O José está à espera que a alfândega tire o termo da carga, que não é estrangeira.

Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passávamos entre as lanchas. Ao longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céu e o Cais dos Mineiros já se perdia distante da névoa vaga. Mas nós avistávamos um outro cais com um armazém ao fundo. À beira desse cais, saveiros enormes esperavam mercadorias; e, em cima, formando um círculo ininterrupto, homens de braços nus saíam a correr de dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a volta à disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como a correia de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia contar. A cara escorrendo suor. Os pobres surgiam do armazém como flechas, como flechas voltavam. Um clamor subia aos céus apregoando o serviço:

– Um, dois, três, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!

E a ronda continuava diabólica.

– Aquela gente não cansa?

– Qual! trabalham assim horas a fio. Cada saco daqueles tem sessenta quilos e para transportá-lo ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos – dão só 30 réis, mas, assim mesmo, há quem tire dezesseis mil réis por dia.

O trabalho da estiva é complexo, variado; há a estiva da aguardente, do bacalhau, dos cereais, do algodão; cada uma tem os seus servidores, e homens há que só servem a certas e determinadas estivas, sendo por isso apontados.

– É muito, fiz.

– Passam dias, porém, sem ter trabalho e imagine quantas corridas são necessárias para ganhar a quantia fabulosa.

A lancha fizera-se ao largo. Caminhávamos para o poço onde o navio que devia sair naquela noite fundeava, todo de branco. Era o começo do dia. A bordo ficou um terno de homens, e eu com eles. O terno divide-se assim: um no guincho, quatro na embarcação, oito no porão e quatro no convés. Isso quando a carga é seca. Carregava café o vapor.

Logo que o saveiro atracou, eles treparam pelas escadas, rápidos; oito homens desapareceram na face aberta do porão, despiram-se, enquanto os outros rodeavam o guincho e as correntes de ferro começavam a ir e vir do porão para o saveiro, do saveiro para o porão, carregadas de sacas de café. Era regular, matemático, a oscilação de um lento e formidável relógio.

Aqueles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da máquina; agiam inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam arrancando as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma estava feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquilo tinha que ser até às 5 da tarde!

Desci ao porão. Uma atmosfera de caldeira sufocava. Era as correntes caírem do braço de ferro um dos oito homens precipitava-se, alargava-as, os outros puxavam os sacos.

– Eh! lá!

De novo havia um rolar de ferros no convés, as correntes subiam enquanto eles arrastavam os sacos. Do alto a claridade caía fazendo uma bolha de luz, que se apagava nas trevas dos cantos. E a gente, olhando para cima, via encostados cavalheiros de pijama e bonezinho, com ar de quem descansa do banho a apreciar a faina alheia. Às vezes, as correntes ficavam um pouco alto. Eles agarravam-se às paredes de ferro com os passos vacilantes entre os sacos e, estendendo o tronco nu e suarento, as suas mãos preênseis puxavam a carga em esforços titânicos.

– Eh! lá!

Na embarcação, fora, os mesmos movimentos, o mesmo gasto de forças e de tal forma regular que em pouco eram movimentos correspondentes, regulados pela trepidação do guincho, os esforços dos que se esfalfavam no porão e dos que se queimavam ao sol.

Até horas tardes da manhã trabalharam assim, indiferentes aos botes, às lanchas, à animação especial do navio. Quando chegou a vez da comida, não se reuniram. Os do porão ficaram por lá mesmo, com a respiração intercortada, resfolegando, engolindo o pão, sem vontade.

Decerto pela minha face eles compreenderam que eu os deplorava. Vagamente, o primeiro falou; outro disse-me qualquer coisa e eu ouvi as idéias daqueles corpos que o trabalho rebenta. A principal preocupação desses entes são as firmas dos estivadores. Eles as têm de cor, citam de seguida, sem errar uma: Carlos Wallace, Melo e François, Bernardino Correia Albino, Empresa Estivadora, Picasso e C., Romão Conde e C., Wilson, Sons, José Viegas Vaz, Lloyd Brasileiro, Capton Jones. Em cada uma dessas casas o terno varia de número e até de vencimentos, como por exemplo –o Lloyd, que paga sempre menos que qualquer outra empresa.

Os homens com quem falava têm uma força de vontade incrível. Fizeram com o próprio esforço uma classe, impuseram-na. Há doze anos não havia malandro que, pegado na Gamboa, não se desse logo como trabalhador de estiva. Nesse tempo não havia a associação, não havia o sentimento de classe e os pobres estrangeiros pegados na Marítima trabalhavam por três mil réis dez horas de sol a sol. Os operários reuniram-se. Depois da revolta, começou a se fazer sentir o elemento brasileiro e, desde então, foi uma longa e pertinaz conquista. Um homem preso, que se diga da estiva, é, horas depois, confrontado com um sócio da União, tem que apresentar o seu recibo de mês. Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua policia para a moralização da classe. A União dos Operários Estivadores consegue, com uns estatutos que a defendem habilmente, o seu nobre fim. Os defeitos da raça, as disputas, as rusgas são consideradas penas; a extinção dos tais pequenos roubos, que antigamente eram comuns, merece um cuidado extremado da União, e todos os sócios, tendo como diretores Bento José Machado, Antônio da Cruz, Santos Valença, Mateus do Nascimento, Jerônimo Duval, Miguel Rosso e Ricardo Silva, esforçam-se, estudam, sacrificam-se pelo bem geral.

Que querem eles? Apenas ser considerados homens dignificados pelo esforço e a diminuição das horas de trabalho, para descansar e para viver. Um deles, magro, de barba inculta, partindo um pão empapado de suor que lhe gotejava da fronte, falou-me, num grito de franqueza:

– O problema social não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que este país é rico, mas que se morre de fome? É mais fácil estourar um trabalhador que um larápio? O capital está nas mãos de grupo restrito e há gente demais absolutamente sem trabalho. Não acredite que nos baste o discurso de alguns senhores que querem ser deputados Vemos claro e, desde que se começa a ver claro, o problema surge complexo e terrível. A greve, o senhor acha que não fizemos bem na greve? Eram nove horas de trabalho. De toda a parte do mundo os embarcadiços diziam que trabalho da estiva era só de sete!

Fizemos mal? Pois ainda não temos o que desejamos.

A máquina, no convés, recomeçara a trabalhar.

– Os patrões não querem saber se ficamos inúteis pelo excesso de serviço. Olhe, vá à Marítima, ao Mercado. Encontrará muitos dos nossos arrebentados, esmolando, apanhando os restos de comida. Quando se aproximam das casas às quais deram toda a vida correm-nos!

Que foi fazer lá? Trabalhou? Pagaram-no; rua! Toda a fraternidade universal se cifra neste horror!

Do alto caíram cinco sacas de café mal presas à corrente. Ele sorriu, amargurado, precipitou-se, e, de novo, ouviu-se o pavor do guincho sacudindo as correntes donde pendiam dezoito homens estrompados. Até à tarde, encostado aos sacos, eu vi encher a vastidão do porão bafioso e escuro. Eles não pararam. Quando deu cinco horas um de barba negra tocou-me no braço:

– Por que não se vai? Estão tocando a sineta. Nós ficamos para o serão à noite… Trabalhar até à meia-noite.

Subi. Os ferros retiniam sempre a música sinistra. Encostados à amurada, damas roçagando sedas e cavalheiros estrangeiros de smoking, debochavam, em inglês, as belezas da nossa baía; no bar, literalmente cheio, ao estourar do champagne, um moço vermelho de álcool e de calor levantava um copo dizendo:

– Saudemos o nosso caro amigo que Paris receberá…

Em derredor do paquete, lanchas, malas, cargas, imprecações, gente querendo empurrar as bagagens, carregadores, assobios, um brouhaha formidável.

Um cavalheiro cheio de brilhantes, no portaló, perguntou-me se eu não vira a Lola. Desci, meti-me num bote, fiz dar a volta para ver mais uma vez aquela morte lenta entre os pesos. A tarde caíra completamente. Ritmados pelo arrastar das correntes, os quatro homens, dirigidos do convés do steamer, carregavam, tiravam sempre de dentro do saveiro mais sacas, sempre sacas, com as mãos disformes, as unhas roxas, suando, arrebentando de fadiga.

Um deles, porém, rapaz, quando o meu bote passava por perto do saveiro, curvou-se, com a fisionomia angustiada, golfando sangue.

– Oh! diabo! fez o outro, voltando-se. O José que não pode mais!