“Nossa Senhora do Silêncio” – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Nossa Senhora do Silêncio
Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?
A minha vida é tão triste, e eu nem penso em chorá-la; as minhas horas tão falsas, e eu nem sonho o gesto de parti-las.
Como não te sonhar? Como não te sonhar? Senhora das Horas que passam, Madona das águas estagnadas e das algas mortas, Deusa Tutelar dos desertos abertos e das paisagens negras de rochedos estéreis – livra-me da minha mocidade.
Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa – livra-me da alegria e da felicidade.
Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono – faze com que eu seja odiado pelos homens e escarnecido pelas mulheres.
Címbalo de Extrema-Unção, Carícia sem gesto, Pomba morta à sombra, Óleo de horas passadas a sonhar – livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte.
Lírio fanando à tarde, Cofre de rosas murchas, silêncio entre prece e prece, enche-me de nojo de viver, de ódio de ser são, de desprezo por ser jovem.
Torna-me inútil e estéril, ó Acolhedora de todos os sonhos vagos; faze-me puro sem razão para o ser, e falso sem amor a sê-lo, ó Água Corrente das Tristezas Vividas; que a minha boca seja uma paisagem de gelos, os meus olhos dois lagos mortos, os meus gestos um esfolhar lento de árvores velhinhas – ó Ladainha de Desassossegos, ó Missa-Roxa de Cansaços, ó Corola, ó Fluido, ó Ascensão!…
Que pena eu ter de te rezar como a uma mulher, e não te querer como a um homem, e não te poder erguer os olhos do meu sonho como Aurora-ao-contrário do sexo irreal dos anjos que nunca entraram no céu!
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.
Que os teus atos sejam a estátua da renúncia, os teus gestos o pedestal da indiferença, as tuas palavras os vitrais da negação.
Esplendor do nada, nome do abismo, sossego do Além…
Virgem eterna antes dos deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda de todos os mundos, estéril de todas as almas…
A ti são oferecidos os dias e os seres; os astros são votos no teu templo, e o cansaço dos deuses volta ao teu regaço como a ave ao ninho que não sabe como fez.
Que do auge da angústia se aviste o dia, e, se nenhum dia se aviste, que seja esse o dia que se aviste!
Esplende, ausência de sol; brilha, luar que cessas…
Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Só tu, lua que não há, dás às grutas, porque as grutas […]
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das figuras. Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras gesto lento apenas – és momentos, atitudes, espiritualizadas em minhas.
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores. Os teus seios não são dos que se pudesse pensar em beijar-se. O teu corpo é todo ele carne-alma, mas não é alma é corpo. A matéria da tua carne, não é espiritual mas é espírito. És a mulher anterior à Queda, escultura ainda daquele barro que paraíso.
O meu horror às mulheres reais que têm sexo é a estrada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para serem têm de suportar o peso movediço de um homem – quem as pode amar, que não se lhe desfolhe o amor na antevisão do prazer que serve o sexo […]? Quem pode respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher noutra posição de cópula… Quem não se enoja de ter mãe por ter sido tão vulvar na sua origem, tão nojentamente parido ? Que nojo de nós não punge a idéia da origem carnal da nossa alma – daquele inquieto corpóreo de onde a nossa carne nasce e, por bela que seja, se desfeia da origem e se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida real fazem versos à Esposa, ajoelham à idéia de Mãe… O seu idealismo é uma veste que tapa, não é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Como não te adorar, se só tu és adorável? Como não te amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo tátil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo? Quem sabe se o meu sonhar-te não foi o encontrar-te simplesmente, se o meu amar-te não foi o pensar-em-ti, se o meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amor não foram a obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
Não sei mesmo já [se] não te amei já, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.
Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol possuídos em ti.
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação…
Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja pó? Janela no teu quarto, que importa que eu seja espaço? Hora na tua clepsidra, que importa que eu passe, se por ser teu ficarei, que eu morra se por ser teu não morrer, que eu te perca se o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, Seguidora de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua me adormeça, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgem-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da Guarda dos abandonados, Paisagem humana e irreal de triste e eterna Perfeição.
Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar como feminina.
Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. És como que um sentimento que fosse o seu próprio objeto e pertencesse todo ao íntimo de si próprio. És sempre a paisagem que eu estive quase para poder ver, a orla da veste que por pouco eu não pude ver, perdida num eterno Agora para além da curva do caminho. O teu perfil é não seres nada, e o contorno do teu corpo irreal desata em pérolas separadas o colar da idéia de contorno. Já passaste, e já foste e já te amei – o sentir-te presente é sentir isto.
Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações. Por isso eu não te penso nem te sinto, mas os meus pensamentos são ogivais de te sentir, e os meus sentimentos góticos de evocar-te.
Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem nítida de vazio da minha imperfeição compreendendo-se. O meu ser sente-te vagamente, como se fosse um cinto teu que te sentisse. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu para que o causes, ou estranha lua submarina para que, não sei como, o finjas.
Quem pudesse criar o Novo Olhar com que te visse, os Novos Pensamentos e Sentimentos que houvessem de te poder pensar e sentir!
Ao querer tocar no teu manto as minhas expressões cansam o esforço estendido dos gestos de suas mãos, e um cansaço rígido e doloroso gela-se nas minhas palavras. Por isso, curva um vôo de ave, que parece que se aproxima e nunca chega, em torno ao que eu quereria dizer de ti, mas a matéria das minhas frases não sabe imitar a substância ou do som dos teus passos ou do rasto dos teus olhares, ou da cor triste e vazia da curva dos gestos que não fizeste nunca.
E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faze o teu dever de mera taça. Cumpre o teu mister de ânfora inútil. Ninguém diga de ti o que a alma do rio pode dizer das margens, que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar.
Que o teu gênio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica. Não sejas nunca mais nada.
Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre o sonho de amar-te. És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver…
Texto publicado em Livro do Desassossego.
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