TRÂNSITO e outros contos

O ser humano é um bicho muito estranho. Não costumamos pensar muito sobre o tamanho dessa estranheza porque estamos dentro da caixa, mas, quando nos propomos a sair dela e a observamos como se fôssemos de fora, fica evidente que as baratas devem ter muito nojo de nós. Enquanto o resto dos outros seres vivos cumpre um papel bem definido na existência, o nosso parece contraditório, porque aparentemente não seguimos um roteiro na Natureza. Nós, na verdade, somos os autores e protagonistas da nossa parte neste roteiro. E essa capacidade de interferir no curso da História é contraditoriamente algo bom e ruim: se, por um lado, lhe dá movimento, por outro lhe desequilibra. Mas também não dá pra negar com certeza absoluta que não haja movimento ou desequilíbrio imprevistos, e que essa vantagem evolutiva sirva apenas para executarmos mais um papel preestabelecido ㅡ o nosso papel ㅡ, intrínseco ao sentido natural da vida, como ela deve ser. Em outras palavras, não dá pra negar ou afirmar com precisão que não temos nada de especial, que somos apenas mais algumas peças de uma engrenagem de proporções e propósitos desconhecidos ㅡ eu, pessoalmente, tendo mais à segunda alternativa. Para complicar um pouquinho mais, cada indivíduo da espécie tem suas próprias e específicas contradições, no contexto de suas próprias e específicas motivações. Neste nível, a matemática da vida fica aparentemente complexa demais para ser abstraída pela consciência humana, mesmo quando fora da caixa. Então, analisando a questão sob esta lente, um produtivo exercício é tentar responder para si mesmo (a), lá no íntimo: existe alguém que esteja em condições verdadeiramente adequadas para fazer qualquer julgamento realmente justo sobre outro alguém? Trânsito e Outros Contos é um recorte de algumas destas contradições humanas, coladas numa superfície mais palpável, o cotidiano social. Se você for paulistano (a), lhe será mais palpável ainda: são contradições de um universo bem paulistano, eu diria. Arrisco supor que Jeff tenha tentado resolver aqueles cálculos da vida, mas percebeu que isso não só seria inconclusivo como o levaria à loucura, então preferiu expor estas contradições quase que como notícias, esforçando-se ao máximo para não julgar. Mas é claro que neste tipo de empreitada não dá pra ter 100% de sucesso, julgar é parte do pacote. Talvez seja por isso que, consciente deste problema insolúvel e da nossa incapacidade de enxergar o quadro geral, ele comece o livro com uma citação que prepara o terreno, como que uma âncora, um lembrete do que mais importa, acima de qualquer contradição imaginável, para que não comecemos logo de cara a sucumbir aos julgamentos, que partem de nossas contradições pessoais, portanto carregados de equívocos: “Todo mundo tem direito à vida, todo mundo tem direito igual”. Esta é a única verdade, o resto é palpite.

Leonardo Cubas Gusmão

Nota: os textos deste e-book e de “Vês?”, estão no livro ㅡ em formato físico ㅡ “Conto-lhe”, disponível para compra no site da editora Uiclap.