Só Uma História

‘Dizem que ao atravessar um rio você chega ao outro lado da margem transformado’ – Eu disse pra ele – ‘porque a experiência de atravessar esse rio adicionou alguma coisa em mim. Me tornou diferente. Posso dizer que sou uma nova pessoa ao chegar do outro lado.
‘Você não desiste de ser romântico, não é mesmo?’ – Me disse ele com seu sorriso habitual, exibindo o canino esquerdo. Fez uma pausa longa o suficiente para ouvirmos o navio todo estalando enquanto balançava acompanhando o oceano calmo e profundamente escuro.
Ele então pegou a lamparina de cima da mesa, que estava apagada, acendeu-a dizendo baixinho palavras de encantamento e em segundos fez o navio ser o único ponto luminoso naquela noite escura. Aproximou a lamparina incandescente de seu rosto inumano. Ele queria que eu encarasse de uma vez por todas aqueles olhos de tigre, foi o que fiz.
‘Você esqueceu de considerar uma coisa, Moldavita’ – Me disse ele naquela voz inumana – ‘ao chegar do outro lado da margem do rio, você poderá de fato ter mudado, se tornado outra pessoa. Mas não só porque ganhou algo, você também pode estar mudado porque perdeu algo.
Aquilo me feriu como uma picada de cobra, mas respirei fundo e raciocinei dessa forma: ‘ainda assim, a experiência de perder é, ainda assim, a adição de uma nova experiência’ – Eu estava cansado e já torcia para ver o sol nascendo no horizonte, assim ele logo iria embora de volta o seu cofre.
‘Você nunca de fato leu Heráclito, certo?’ – continuou ele – ‘quando você atravessa o rio, você muda, isso é inevitável. Tenha você ganhado ou perdido algo, encontrado ou esquecido alguém, tenha você partido ou chegado…você muda!’
Ele se levantou empurrando a cadeira de madeira para trás, seu movimento brusco apagou a lamparina. Fiquei em silêncio porque sabia que ele estava esperando que eu entendesse algo, mas o que?!
O som das suas botas batendo na madeira indo embora pararam antes das escadarias que davam para os porões do navio. Ele se virou olhando para mim novamente, seus olhos amarelos brilhavam mais que a própria lua crescente, pareciam me dizer “você ainda não entendeu?” foi então que o navio balançou, era uma onda se chocando no casco, fazendo chover brevemente no convés. Aquela chuvinha breve e refrescante deslocou minha percepção, me fez perceber que precisava voltar a respirar.
Olhei para o leste, que começava clarear, e então entendi: ao atravessar o rio, o rio também te atravessa e ambos passam a ser diferentes a partir de então.
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‘Só Uma História’ é narrado em primeira pessoa, um romance psicológico que conta sobre a aventura de um personagem que vive em uma época passada. Em sua trajetória encontrará mistérios ocultos, poetas, bruxas e alquimistas que o ajudarão a encontrar maneiras de fazê-lo rever sua esposa. Uma aventura cheia de poesias, referências musicais, personagens pop dos anos 90 e personagens históricos do ocultismo.
Escrito entre 2019 e 2020 ao longo da pandemia do COVID19.