Prosas livres e personagens nem tanto (Vivissecção)

É sempre bastante desafiador acompanhar o pensamento de quem lê Guattari, Deleuze, Foucault, Heidegger, Espinoza. É lúdico. Para a pequenez da minha mente moderna, extremamente preocupada em esquadrinhar, definir, conceituar, iluminar, a leitura dos passeios espirituais livres destes três escritores é armadilha. E digo o motivo: a liberdade encanta, e encanta porque vem da natureza. Basta desprender a coleira de um cachorro que passou o dia inteiro preso num quintal sujo para se encantar com os pinotes dados pela besta livre do cativeiro. Quando leio Amarelos Empambados sem Coletes, que é quando Jayme me diz “Ciência, ciência? Eu quero é o belo!”, percebo “É claro! O belo é que cura!”, e lembro, como se fosse aquele cachorro que teve suas amarras desatadas, que o encantamento trouxe a mim as conclusões mais insubmissas a que já cheguei. Assim foi quando constatei ter sido libertador ao cientista Erasmus se tornar uma estrutura de ferro no pátio de um sanatório em Análise de um Abandono, de Paulo Victor. É uma variação contemporânea da história d’O Alienista: ao invés do homem de ciência concluir que todos eram doentes, foi ele quem percebeu sofrer de sanidade crônica. “Vou fundir tudo o que existe em mim numa barra de ferro, e o meu Eu some, e tudo o que existe é Fe 26”. Mas, tenho que admitir que, já há algum tempo, percebi as limitações e as desvantagens da racionalidade irrestrita. Nas armadilhas destes três gosto de cair, porque já as conheço, porque aceitei vestir-me com o barrete frígio do espírito, apesar de não saber ainda aonde irá me levar. Paulo, Jayme e Júlio, não, estes já sabem, há muito, desde quando os via juntos propalando insanidades filosóficas no pátio daquele Centro de Humanidades, que se deve acalmar os arroubos megalomaníacos da razão. Pois esta obra, que agora vai lançada, e logo agora, neste 2020 tão desconcertante, é uma crítica à modernidade na sua versão prosaica, despreocupada, que nos mostra, como Júlio o faz no seu Rota de Fuga, que aquela volta para casa a bordo de um ônibus pode significar uma experiência imaginativa alucinante, completamente despojada de ímpetos explicativos frios. Ali, no delírio das distorções das imagens decorrentes da variação de velocidade do veículo, pode-se ser o James Bond bandido, ou o Coringa benfeitor.Aos leitores: permitam-se o abandono na indeterminação! Baixem a guarda da crítica! A inconsciência pede pelo desafogo, pela descompressão! Deixem que estes três escritores sejam para vocês o que Virgílio foi para Dante, e sigam rumo ao paraíso da belíssima irreflexão!Willem CarneiroBrasília, 14 de agosto de 2020