O Escritor, as Sombras e o Capeta Peludo de Chifres de Bode

É claro que o capeta está ali debaixo da sua cama, com seus ameaçadores olhos vermelhos e seus imponentes chifres retorcidos, afinal de contas, ele resolveu há anos fazer de lá a sua morada, talvez desde os seus tempos de criancinha. E você sabe muito bem disto, pois do contrário, não teria tanto medo de dormir com os pés para fora dela.
E tem mais, você pode tentar se convencer de que almas penadas não existem, mas existem, e aos montes, e tão certo é o fato, que em noites de tempestade, você corre acender velas por toda a casa antes mesmo da luz vir a faltar.
Se você tem medo destas e outras coisas ainda mais assustadoras, este é o livro certo para você, não para que deixe de tê-lo, mas para que saiba que realmente é bom se manter precavido, pois o que não falta neste mundo são coisas estranhas por toda a parte, coisas que realmente estão aí com a única intenção de deixá-lo apavorado e de cabelos em pé.
Boa leitura!

Trechos da obra:

“E assim, cresci e me tornei um garoto travesso e ousado. Lembro-me que a partir dos doze anos, não houve dia que não fora castigado com a palmatória ou recluso a pão e água num quarto minúsculo onde deveria orar por horas a fio. Posto que nada disto tranquilizasse o meu temperamento, os padres acharam por bem me exorcizar.
Numa noite, puseram-me diante deles com umas cruzes de bom tamanho, jogaram-me água benta exigindo ao demônio que abandonasse o meu corpo. Eu então comecei por revirar os olhos de uma maneira horrível, mostrei-lhes a língua, pondo-a o mais que podia para fora, e cacarejei, grunhi, gritei, cantei, esperneei, eriçando os seus poucos cabelos; por fim, cansado de tais peripécias, fiz sair de minha garganta uma voz rouca, entrecortada, forte, medonha, a voz do demônio, e disse-lhes:
(…)”

“Por um tempo consegui com meu ardil viver em paz, aprontando aqui e ali desdenhosamente sob as vistas de todos. Um dia, porém, uma freira de bigode veio substituir uma aula de Religião lecionada por um padre que se encontrava em retiro. Vendo isto, presumi que a freira haveria também de ter pelos em lugares pouco prováveis para uma mulher. E pus-me, enquanto ouvia seus ensinamentos, a desenhá-la apenas com a parte do hábito que lhe recobria a cabeça. E a enchi de pelos nos seios, que eu desenhara grandes e murchos até o umbigo, e também nas axilas, e em suas vergonhas, botei-lhe tantos pelos enroladinhos e avolumados que lhe cobriram parte das coxas. Junte-se a isso o tamanho descomunal do abdome em acentuada desproporção às pernas finas de garça. E assim terminado, fiquei a rir de meu desenho, mostrando-o aos garotos que se sentavam ao meu lado. E foi tamanha a balbúrdia provocada, que me distraí, e quando dei por mim a freira de bigode estava bem ao meu lado.”