Mergulho: Conto Coleção Identidade – Vol.2

Selma é o centro de uma investigação que começa na cozinha de sua casa e segue pistas até um açude da região. Para a investigadora responsável, tudo pode ser indício para compreender o enigma do que acaba de acontecer com a moça e seu pai: o pano de prato engordurado, os galões de água no chão da cozinha, os restos de manteiga sobre a mesa, a musculatura do entregador que teria visitado a casa na mesma manhã. Com atenção máxima aos detalhes supostamente banais, algo determinante parece se revelar sobre esse mergulho.

“Há corpos que nos apelam de maneira tão forte que, por um momento, tendo a oportunidade de cheirar suas cavidades, de testar sob os dedos sua consistência muscular, temos o pressentimento de conhecer ali mesmo aquilo que se chama comunhão: um instante em que o dentro e o fora não se distinguem, em que o universo é nada mais do que a coincidência entre crateras, nebulosas, vácuos e as míseras partículas de areia porventura presas debaixo de uma unha como esta aqui, escreve a investigadora.
Era durante as madrugadas que Selma conseguia experimentar algo próximo dessa sensação: despertava sem sentir os pés, as pernas, os braços, todo o corpo convertido em um centro, uma cápsula sem extremidades ou saliências, sem movimento algum, escreve a investigadora, porém dotado de uma estranha inteireza: tudo era como deveria ser, tudo estava onde deveria estar.
No entanto, no invólucro que Selma experimentava durante tais madrugadas, a palavra tudo não se refere nem jamais se referiu ao mundo ou às ideias imateriais, mas sim aos músculos e estruturas celulares que condensavam a mulher em um único organismo animado. Ela abria os olhos de madrugada e, por um par de segundos, no breu absoluto do quarto não conseguia se lembrar de quem era, do lugar onde estava e nem mesmo que existência seria aquela em que alguém com seu nome era capaz de abrir os olhos. Naquela fração minúscula de tempo era possível para Selma fazer a distinção entre corpo, de um lado, e existência, de outro, na pacífica consciência de que ambos não se garantem mutuamente. Eram momentos em que a moça sentia um profundo bem-estar, equivalente ao das samambaias e rochas minerais, escreve a investigadora. (…)”

Este conto faz parte da Coleção Identidade. Saiba mais em www.amazon.com.br/colecaoidentidade