Forasteiros

um homem caminha sem pressa
vai embora, não deixa inimigos
e nada que o impeça
caminha, não olha para trás
nem faria sentido
não tem nome
não tem raízes
um estrangeiro, um esquecido
é muitos – todos eles – Outros
Eseumar Oliveira, Forasteiros

Sou uma forasteira na vida desse poeta.

Ainda guardo um sorriso para ele. É que mal nos cruzamos no tráfego caótico de um canal da web, onde se traficam informações sobre outsiders, e ele logo me arremessou um punhado de certa substância (a)narcotizante, delirante, comovente, disruptiva, inebriante, transcendente: “matéria obscura” – poesia pura:

“Toma um pouco do que há de mais visceral em mim – um serviço de entranhas”!

E eu que mal sabia pronunciar o seu nome – chamava-o Mar, de repente descobri que Esse Mar escondia um outro Ulisses que ousara ouvir o canto proibido.

O título nos adverte como uma placa de fronteira: aqui é terra de ninguém. “Forasteiros” são aqueles de “feições estrangeiradas que assustam meus sentidos”, é o estranho, o invasor, o pária, o expulso, o excluído, desterrado, exilado, esquecido, ameaçador de minha compreensão e tradução da realidade, pois é o que fala outra língua, tem outros costumes, outro rosto, outro nome – ou não tem nome, ou raízes – o inominável. É “como um animal exótico no zoológico” “do qual me distancio ficticiamente anestesiado” vigilante na manutenção de minhas fronteiras, condicionamentos e pretensas /presumíveis verdades.

Forasteiros são os que nos inspiram a “mover fronteiras”, afinal a “fronteira é só uma linha”.
Mas o que é uma linha?

Um verso é uma linha, é uma fronteira, para um não lugar – imprevisível. E um verso é só passagem de ida, sem tempo definido para a travessia, para a estadia. Perambulamos entre fendas, frestas, cicatrizes. Contemplamos uma jararaca e o rio de Heráclito, bem como o contorno íngreme de uma montanha. Perseguimos um sorriso perdido, lânguido, metafórico e o rastro de uma estrela cadente desgarrada. Habitamos a ruga nova e as ranhuras das pétalas e navegamos as dobras de um barquinho de papel. Espiamos portas e janelas de uma casinha azul, amarela, incendiada, as quinas de uma geometria bizarra.

Recolhemos lascas das paredes e estilhaços de vidro. Rompemos grades, gaiola, gestos, mesmo sem saber o que é a liberdade. Investigamos o limiar das células, veias e entranhas, o caminho dos elétrons e o frio da semi-anã-branca. Tropeçamos em gatilhos, granadas, exércitos em marcha. E ensaiamos desarmar a cortina das obrigações, recusando a máscara irremediavelmente inadequada. Enfim, falta–nos pernas para peregrinar o “caminho limpo, mas acidentado / potencialmente frio, jamais frígido” do poeta comum de braços curtos, duros e os dedos tortos.

Segues? – ele provoca.

Entre-linhas perdidas disfarço o medo de me achar – eu, estrangeira da mim mesma – tal qual grita o poeta – o outro sou eu mesmo.

Linha a linha, verso a verso, somos conduzidos pelo poeta notívago para o “império de fronteiras fluidas” que denunciam o desconforto de existir entre a necessidade de pertencer e o desejo de não ser visto, de não existir.

E do saber ao dessabimento, vem o experimentar de revelações, nano–iluminações, e–pi–fa–ni–as!

Não importa de que lado da linha! O lado de lá é só a vertigem de quem não ousou atravessar pra compreensão alheia à dor nova. A fronteira é uma abstração derivada da nossa ilusão de separação. Mas ainda assim dói ser estrangeiro, forasteiro – o outro:

“qualquer coisa…
dói”.

Mas embora triste, não é um fardo a poesia deste homem comum. O fardo ele o pegou pra si, resistente como é, e nos entregou como oferenda só o sumo refinadamente decantado.

Alexsandra Supertramp
Março de 2021