Degenerados

Abel, um simpático e desmemoriado professor de História, implanta um gravador de pensamentos no lóbulo de sua orelha esquerda. Assim começa “Degenerados”, uma aventura contada em forma de diário, transcrição dos registros colhidos nos trinta e sete dias em que o aparelho permaneceu conectado à sua mente.

Passam os dias, projeções coloridas anunciam no céu uma virada de ano, mas não se sabe exatamente em que época tudo acontece. Um futuro distante? Talvez esse futuro esteja mais próximo do que conseguimos imaginar. Vastos continentes encerram a geografia política de um planeta quente e populoso. Na metrópole de Quantar, a democracia representativa é regida por critérios de mercado. Os líderes políticos são grandes executivos que assumem seus gabinetes de acordo com as cotações de preços nas bolsas de valores. A comunicação de massas e as redes sociais vieram supostamente para aproximar as pessoas, porém sobreveio delas o isolamento, a solidão e o recurso à anestesia psíquica dos fármacos. As ondas da aldeia global irradiaram o culto à uniformidade, a banalização do comportamento e o reforço dos preconceitos.

Nesse contexto, o professor Abel apaixona-se por Zala, criatura desenvolvida no laboratório de seu pai, um engenheiro geneticista. Se Abel é considerado “quase uma criança” em sua geração povoada de centenários, Zala deve ser tutelada por lei porque seu código genético não é exatamente humano. Embora a maior parte do seu complexo organismo seja semelhante ao de um ser humano convencional, uma outra parte, não menos importante, consiste em um arranjo biológico proveniente de cromossomos de outros animais. Assim concebida, ela se tornou capaz de captar sons inaudíveis ao ouvido humano e, por extensão, de enxergar por meio de suas estranhas orelhas. Seu olfato também é extraordinário – o mais bem treinado cão farejador não seria páreo para ela. Em virtude dos seus poderes sensoriais, Zala trabalha em uma indústria de perfumes.

Tais poderes despertariam o fascínio de muita gente, como o professor Abel, mas o genoma híbrido traz medo e intolerância a uma sociedade forjada pelo ideal da homogeneidade. Vem daí o título do romance: degenerado é o primeiro descendente de uma velha espécie, o portador “de gene errado”, que vive em uma civilização eugênica, orgulhosamente mantenedora dos códigos originais da biologia humana. Para o romântico professor, Zala é paixão, desejo e sonho. Para seus inimigos, é uma grave ameaça.

Narrado em primeira pessoa, como o fluxo da consciência de um professor temporariamente afastado de suas atividades cotidianas, este romance pode ser tomado como metáfora dos tempos atuais. Ficção científica, fantasia, romance, investigação de costumes – qualquer rótulo que se aplique a esta trama de amor tende a cair no simplismo. Injusto simplismo. Afinal, são os rótulos que costumam roubar o sono de seus protagonistas.