Cangalha

O romance Cangalha é um livro belíssimo. É um clássico antecipado da literatura brasileira. A importância do livro Cangalha é muito grande em vida de José Humberto Henriques porque insere o escritor definitivamente entre os profissionais da escrita. Foi publicado em primeira edição pela Editora Relume Dumará – Rio de Janeiro -, uma editora de nome em toda a constelação de editores brasileiros. Esse livro tem uma história ampla.
Venceu o Prêmio para Romances da FUNCEB – Fundação Cultural do Estado da Bahia – Salvador – BA – e também o Prêmio Mater Dei de Literatura – Belo Horizonte – MG -, dando ao escritor ampla perspectiva no ambiente literário de um país amordaçado e sofrido.
Ambientada no meio rural de Minas Gerais e Goiás, Cangalha conta a saga de três gerações da família Assunção, sua ascensão e decadência, desde o seu patriarca – Major Julião, bandeirante deixado por sua expedição em meio ao caminho por estar com as febres. Com isso, abre-se a janela de um mundo exótico e difícil de ser imaginado. Nada aqui é tão onírico e inocente como nos romances que sugerem a pureza mistificadora de um país dos tristes trópicos, como é o caso do Brasil. Trata-se de uma ambientação moderna, por outro lado, de um mundo arquetípico e alucinante. Como homens em seu estado deformado e mulheres em um cio que poderia ser jocoso, se acaso não fosse impudente o bastante para ser considerado real. Atitudes de grandeza dessas personagens.
Fugindo aos lugares comuns do regionalismo localizado, JH Henriques trabalha o cenário da trama apenas como ponto de partida para criar um rico universo de personagens e suas lembranças. Não há um único personagem aqui que não sofra de um aleijão físico qualquer. Isso desgasta a gloriosa descrição de cenários magníficos e dá ao livro um critério além do existencialismo. Esses aleijões muitas vezes são bem recebidos pelas personagens, como se elas dependessem disso para cursar dentro da existência com um vício cujo sabor é sempre bem-vindo, mesmo que muito picante.
Assim, vaginas inseridas na coxa de um rapaz, mamas aos sovacos, pênis com duas cabeças, línguas duplas ou bífidas, rabos em humanos, coisas assim, quase inverossímeis, mas que poderiam ser produto de uma teratogenia elaborada em demasia por esse autor que deixa a Literatura Brasileira a ombrear-se com toda a Literatura Universal Moderna e sem dever nada a ela. A ambientação é mineira. Trata de alguns pedaços do estado de Goiás, mas somente em menção. Aqui, o Noroeste de Minas Gerais é citado com a profundidade do grande conhecedor de tal geografia. Não é um teatro lunático, do tipo Júlio Verne, quem se estende diante da imaginação do leitor.
Muito pelo contrário, é uma contração entre sistemas absurdos e psicopatologias astutas que singram no seio desse universo de criatividade insofismável. Quem fica conhecendo esta terra do Arapuá – pequeno município situado nas Minas Gerais -, mesmo que seja através dessa romanceada narrativa, vai perceber que nunca mais ela se desgarrará de sua alma. Cangalha é um desses livros que se oficiam como donos de memória apical. E o leitor deixa o livro depois da leitura de uma maneira enriquecida. Reler talvez seja um passo eficiente para a concretização de maior absorção da obra
Confrontos sociais nas relações de parentesco, desejo, violência e morte alcançam dimensões de tragédia, porém, sempre envolvidas por uma linguagem peculiar que une o exercício da memória com o poder da invenção. Entretanto, o autor não deturpa a palavra à moda de linguajar sertanejo ou regional. Pelo contrário, mantém a hierarquia gramatical de todo o texto de uma maneira que poderia ser chamada de ortodoxa. Só não é completamente ortodoxa porque Henriques está sempre num transe de criação que vai além do plano simplesmente terreno. Viaja num ritmo alucinante. Por isso, quebra a ortodoxia desse mundo e consegue interpretar e traduzir a seu modo o grande movimento desse mundo e seus espíritos em constante dinâmica.