Cachorro correndo sem cabeça: Conto Coleção Identidade – Vol.2
Por Alessandro Garcia“Acordar ainda é tentar domar a atenção: primeiro ela se foca no cheiro de mofo espiralando-se como se diminutas formas orgânicas fossem, em direção às suas narinas; e logo este cheiro já é como uma coisa muito conhecida, então cede lugar à mancha esverdeada de umidade no teto, muito próxima ao arabesco de gesso; que cede lugar ao trinado ininterrupto do sabiá-laranjeira, não importando que só tenham se passado alguns minutos além das três horas da madrugada; que cede lugar à imagem dos cupons de desconto de supermercado em papel-jornal craquelento avolumando-se no criado mudo do lado direito da cama; que cede lugar ao chiado do rádio que ficou ligado todo o tempo e manifesta-se em estática; que cede lugar à luminosidade amarelada do poste ainda aceso na calçada em frente à casa dentro da qual você está — intercalando sua atenção entre sons, odores e vislumbres, olhos arregalados na madrugada como se pudesse ouvir o choro soluçante de um vizinho muito distante, abraçado ao travesseiro, que dirá, se perguntado, Nada. Não é nada. Só sonhos tristes. Ou coisa assim —, em luta para que suas pálpebras façam peso à angústia da perspectiva da manhã iminente; uma, duas, três piscadas como se em slow motion e seus olhos finalmente cedem e é no exato momento em que a mão da sua mãe se contrai em espasmo e aperta seu braço e interrompe a quase imersão no seu tempo subterrâneo e agora é tarde demais para tentar o sono novamente e por isso seus olhos permanecem arregalados até a luz de vapor mercuriano do poste dar lugar à solaridade inevitável.
Já a esta hora há sol em demasia do lado de fora, quando você sai para o lado de fora. Há também ramos secos riscando sua pele fina e corvos sobrevoando o pessegal como se ali houvesse corpos e não polpas caídas ao solo e atacadas por formigas — obstáculos para suas sandálias trançadas. É seu caminho de todos os dias, opção mais longa para chegar ao mercado da cidade no maior período de tempo que você consegue. Quanto mais longa sua permanência fora de casa, mais distante das lamentações e gritos hediondos da sua mãe; ela, que mesmo mergulhada na banheira até fazer boiar a correntinha de ouro com a bonequinha de saia, que deve ser você, encontra disposição para os gritos, porque faltam os mantimentos e daqui a pouco aqueles sanguessugas estarão novamente acampados em frente à casa, tocando a campainha como se fossem visitas solicitadas e, antes que se perceba, estarão mexendo nos armários e subindo as escadas, por isso é preciso que você vá de uma vez ao mercado, corvos lhe acompanhando como guarda-costas aéreos.
Você precisava ter chamado a polícia? Quem é você? A porra de uma salvadora? Não podia ter deixado ela lá e continuado a caminhar pra casa? Era só andar e ficar de boca fechada e deixar aquela menina lá, só deixar pra lá e outra pessoa faria o que tinha que ser feito. Você não pode ser minha filha. Você é mesmo uma estúpida!
Quando você coloca os pés fora do mercado, sacolas pesadas de pão e leite e pó de café e ovos e coxas congeladas de galinha e garrafas de suco de laranja, eles estão lhe cercando. Blocos de papel em punho, câmeras e gravadores voltados em sua direção como se uma declaração sua fosse o que todos desejam assistir antes de engolir o purê de batata, encarando o azulado da televisão. (…)”
Este conto faz parte da Coleção Identidade. Saiba mais em www.amazon.com.br/colecaoidentidade
Características do eBook
Aqui estão algumas informações técnicas sobre este eBook:
- Autor(a): Alessandro Garcia
- ASIN: B07V1HF41M
- Idioma: Português
- Tamanho: 123 KB
- Nº de Páginas: 32
- Categoria: Literatura e Ficção
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