Abstração

“Marcos usa gel no cabelo recém cortado e alisado e seus olhos castanhos são pequenos mas cheios de brilho. Ele não para de falar e repetir os mesmos assuntos, usando um tom de voz mais elevado do que o normal e andando rápido, pulando entre a calçada e a rua, desviando de carros, postes e sacos de lixo e me forçando a apertar o passo para acompanhá-lo, algo que odeio fazer.
– Mano, vai ser da hora. Tá todo mundo lá. Depois você vai me agradecer por ter te tirado de casa hoje – diz.
Somos amigos desde sempre, nós dois. E até boa parte da adolescência nunca houve muitos outros conosco. Ele foi segregado por quase todos nossos colegas de infância porque se descobriu homossexual bastante jovem e teve de conviver com as consequências de assumir quem realmente é. Criança pode ser mais cruel do que qualquer adulto. Imagino como deve ter sido difícil e o admiro por isso. Eu, por outro lado, fui me distanciando mais e mais das pessoas na medida em que ia crescendo e o futebol era o único assunto que mantive em comum com os moleques da quebrada. Gostava de jogar e era excelente jogador, o que me garantiu uma certa popularidade entre os que também jogavam; mas o assunto se limitava a futebol. E como não jogo há um bom tempo, nem isso sobrou.
Tal fato nos aproximou. Olhamos um para o outro e nos percebemos forasteiros, deslocados, desde criancinhas. E por motivos diferentes, é verdade, porque ele sempre quis se enturmar e fazer parte da geral, mas não pôde por causa do preconceito. Até hoje suas amizades na quebrada são poucas e a maioria de seus amigos são pessoas que ele conheceu depois de velho. E eu posso, se quiser, porém não quero. Ou melhor, não consigo.”

É assim que começa a história desse protagonista que flutua entre as ruas da periferia onde mora, o centro da cidade de São Paulo e a faculdade de engenharia que frequenta sem vontade, exercitando reflexões sobre a vida — a sua e as dos que estão ao seu redor — em busca de algum entendimento e, com sorte, uma direção a ser tomada.