A vida nos escombros (Fim da 1ª Parte – Cap. VI a VIII)

Sofrendo de dupla personalidade, Óscar Moleiro, o protagonista principal deste romance, vive num confronto cada vez mais antagónico entre a perceção objetiva e a perceção interior que ele tem da realidade.
O que não deixa de surpreender é que o vazio da sua vida, a ausência de acontecimentos notáveis, possam, no entanto, suscitar o interesse próprio das mais profundas questões existenciais, uma vez transpostos para o papel!

I
O lince e o rato

Comecei muito cedo a claudicar: a minha fértil imaginação revelou-se particularmente precoce. Pois mal eu tinha entrado na idade de razão e já a fantasia me tinha dado a volta aos miolos. Apesar da minha tenra idade, já se me acometia todo o tipo de contradições interiores. Ainda criança, comecei logo a transportar dentro de mim um lince azul e um rato branco que me estiraçavam cada um para o seu lado. Foram as primeiras manifestações do Marcelo em mim. Sob a sua influência, os eventos reais metamorfoseavam-se imediatamente em fantásticas aventuras que me deixavam à beira da exaustão. E, no sentido inverso, à atividade da minha imaginação também correspondiam sempre acontecimentos reais: assim, sucedeu que o rato roeu o azul e o lince devorou o branco.