Bem será para alguns motivo de maravilha, e de riso para muitos, a declaração por onde me agrada começar este Ante Prologo; e he, que o estou principiando, e querendo Deos o levarei ao cabo, antes de conhecer a Obra para que vai feito. Quatorze annos, e não poucos d’elles bem estirados, são hoje discorridos depois de impressa, e por tanto segundo meu costume aposentada e esquecida, a minhaPrimavera. N’estes quatorze annos, começados a contar aos vinte e dois da minha vida, não só se encerrou, e desvaneceo aquella melhor, mais florída e derramada parte d’ella, que tanto discrimina, e afasta o periodo seguinte do anterior, senão que ahi se desatou tão desfeito temporal de successos estranhos, de terrores e calamidades publicas; tantas certezas saírão vãs, realisarão-se tantos impossiveis; por tal arte se transtornou e renovou ora em bem ora em mal a face do nosso Portugal; tão fracas e tenues reliquias de um passado, que ainda nós os moços alcançámos, subsistem já agora quer nas pessoas, quer nas cousas e costumes, e emfim por tudo isto nos petreficámos, e envelhecemos em tanta maneira, que por mim digo, n’estes quatorze annos me parece ter a Fortuna desbaratado cabedal de seculos, e o Tempo uma larga idade do mundo. Tantos e taes annos que da minha Obra me separão, não custará muito a crer ma tenhão tornado ao cabo tão alhea, como se d’ella só mui por longe me houvera susurrado uma leve noticia. Esta idea confusa, mas suave e suavissima como apagado retrato de antigos amores, como lua de estio contemplada em fundo de ermo, ou como vista de remotas velas ao coração do que alem-mar definha desterrado entre asperezas, esta idea toda mansa, toda rosada, toda primavera, mais temo perdê-la do que todas as minhas outras illusões, se por ventura já hoje alguma tenho. Talvez receie, e se receio talvez me não falte rasão, que ao reler estes Poemettos, nem ache n’elles as côres que os longes me figuravão, nem os gostos com que os hia não compondo, mas para assim dizer colhendo e enramalhetando pelas varzeas e valles do Mondego: tanta foi a metamorphose que de mim fizerão os livros, as couzas, e a idade! Como que tenho uma dolorosa certeza de que me acontecerá com isto o que ja me succedeo visitando, depois de espaçosissima ausencia, as cazas onde a minha primeira infancia fôra brincada, amada e perdida: tudo achei mesquinho, solitario e quasi mudo, tudo me dizia muita saudade e nenhum prazer; cada pedra tinha sua historia, mas todas me clamavão outros tantos desenganos. Grande differença esta entre as nossas proprias antigalhas e as do mundo! as do mundo pelo seu mesmo misterio nos deleitão, são a primeira pagina de um romanse para a imaginação; as nossas pela sua certeza nos contristão, e são a pagina ultima de uma historia que assaz nos corria formosissima.
Características do eBook
Aqui estão algumas informações técnicas sobre este eBook:
- Autor(a): Antonio Feliciano de Castilho
- ISBN-10: 1274834228
- ISBN-13: 978-1274834225
- ASIN: B09BD4S38R
- Editora: Library of Alexandria
- Idioma: Português
- Tamanho: 545 KB
- Nº de Páginas: 221
- Categoria: História
Amostra Grátis do Livro
Faça a leitura online do livro A Primavera, escrito por Antonio Feliciano de Castilho. Esse é um trecho gratuito disponibilizado pela Amazon, e não infringe os direitos do autor nem da editora.