a chama e o vento

“Da varanda, aturdido, ainda pude ver o carro em que ela entrou roncar o motor e partir, sem acender lanternas e faróis, desaparecendo na noite. Assim, em março de 1969, ano em que se formaria em medicina, minha irmã entrou para a clandestinidade. Faria, em breve, 24 anos. Exceto em sonhos, apenas tornaria a revê-la no Aeroporto do Galeão, quando partiu para o exílio. Jamais retornaria para casa.”
Neste romance de Sérgio Mudado, fato e ficção, passagens por vezes admiráveis, mesclam-se criando um panorama – absurdo – da dramática trajetória de vida de uma família, de origem simples, arrebatada e sufocada pelos tentáculos implacáveis da ditadura que se instalou no Brasil, em 1964.
A partir do momento em que a filha mais velha, uma jovem estudante de medicina (idealista como quase todos os de sua geração) troca o conforto e a segurança do lar pela clandestinidade, dispondo-se à luta armada contra o Estado opressor, a vida dos pais e, principalmente a do irmão único, caçula – narrador dos acontecimentos – são inexoravelmente arrastadas para um mundo absoluto de imensurável angústia, de mortificação sem fim.
Com maestria e delicadeza, delineada no painel daqueles anos turbulentos, uma história pincelada com tintas de sombra e de luz, envolve personagens cujas vidas oscilam entre os ditames da tirania sanguinária e o faz de conta da Esperança – esta, talvez, o pior dentre todos os males.
Medo, coragem, medicina e alquimia, exílio e morte, o signo da solidão criando a poesia – e também o além do imaginável – compõem a impressionante visão deste drama íntimo, cujas páginas, mesmo desvelando o cenário irracional e cruel do viver sob um regime de força, são iluminadas, por assim dizer, pela luz que remanesce viva, oriunda do valor de liberdade que teima, não importa o preço, em florescer na natureza humana.