A Carta do Capitão Henrique d´Tovar

Em 1426, um navegador da Casa do Infante parte do Porto de Lagos sob a bandeira da Ordem de Cristo, com a missão de explorar as terras ao sul das Canárias, sobrepujando o Bojador, o cabo maldito. Cercado de funestos vagalhões, diziam as lendas que ao redor do terrível promontório o mar fervia sobre recifes de arestas aguçadas, incendiando as embarcações. Baseado em fatos históricos, ‘A Carta do capitão Henrique d’ Tovar’ descreve em minúcias os trágicos e surpreendentes acontecimentos de sua expedição, com a leveza certa para mesclar a tragédia ao humor.

Trechos da obra:

“Eu já havia me despido e deitado quando uma diáfana névoa atravessou a escotilha e mansamente se dirigiu ao meu leito, exalando um perfume de âmbar das Índias que me entorpeceu os sentidos. E por um instante pairou a três palmos acima de mim, transformando-se num súcubo de longos cabelos prateados, olhos cor de fogo e seios arredondados. Tão logo se aproximou, recostando seus lábios mornos nos meus, tocou-me o peito com a ponta da unha carmim de seu dedo indicador, deslizando-a lentamente até abaixo de meu ventre. Pareceu-me durante este momento que o meu corpo ia se rasgando ao seu toque, e pela fenda profunda que se abrira, o meu sangue jorrava vivaz como uma fonte. Ela então sorriu envolvendo-me com o seu diabólico corpo, e eu a possui como nunca o fizera com mulher alguma…”

“Senhor, creio que poucas pessoas neste mundo estiveram um dia posicionadas como eu, entre a cruz e a caldeira. Confesso-vos que fiquei por um tempo infinito a refletir, procurando descobrir nos recônditos de meu ser os propósitos de Deus para comigo, e nada vislumbrei. Ao imaginar-me, porém, errando para todo o sempre atrás do rabo do Cão, senti-me desanimado. Dei, pois, as costas ao vulto que me aguardava pacientemente imiscuído em silêncio às sombras, e afastei-me sem qualquer receio, sem quaisquer ilusões….”

“Acordei com os primeiros raios de sol sob a fúria dos pontapés de um nativo. Ao pôr-me de pé junto aos demais, fui tomado pelo desejo de viver, por um momento apenas, num mundo onde não houvesse Deus, nem o diabo, nem os santos, nem os anjos, nem os deuses do mar; eu viveria então sob o jugo de minha vontade, e escreveria as linhas do meu destino… vitorioso.”