“Versos de Presos” – João do Rio
Versos de Presos
O criminoso é um homem como outro qualquer. No primeiro momento, sob o pavor dos grandes muros de pedra, com um guarda que nos mostra os indivíduos como se mostrasse as feras de um domador, a impressão é esmagadora. Vê-se o crime, a ação tremenda ou infame; não se vê o homem sem o movimento anormal, que pôs à margem da vida. Quando a gente se habitua a vê-los e a falar-lhes todo o dia, o terror desaparece. Há sempre dois homens em cada detento – o que cometeu o crime e o atual, o preso. Os atuais são perfeitamente humanos, Só uma variedade da espécie causa sempre náuseas; os ladrões, os “punguistas”, os “escrunchantes”, porque dissimulam, mentem e têm, constante no riso e na palavra, um travo de cinismo. Os outros não. Conversam, contam fatos e pilhérias, arranjam o pretexto de ir lavar a roupa para apanhar um pouco de sol no lavadouro, são homens capazes até de sentimentos amáveis.
Ora, este país é essencialmente poético. Não há cidadão, mesmo maluco, que não tenha feito versos. Fazer versos é ter uma qualidade amável. Na detenção, abundam os bardos, os trovadores, os repentistas e os inspirados. São quase todos brasileiros ou portugueses, criados na malandragem da Saúde. A média poética é forte. Desordeiros perigosos, assassinos vulgares compõem quadras ardentes, e há poetas de todos os gêneros, desde os plagiários até os incompreensíveis. Não sei se a timidez ou outra razão mais obscura os faz assinar as composições poéticas apenas com as iniciais e quando muito com as iniciais precedidas do nome de batismo.
– Assine você o seu nome por extenso! dizia o guarda.
O poeta detento hesitava, punha as iniciais e, por baixo, entre parêntesis, escrevia o nome. As iniciais têm que vir fatalmente, são o complemento necessário ao fim da obra, Por quê? E misterioso, mas verdadeiro.
Os assuntos escolhidos pelas iniciais superiores da detenção abrangem todas as modalidades do sentir. Como há plagiários – o Antônio, crime de ferimentos, que se intitula autor da modinha Nasci para te Amar, – há simbolistas que escrevem coisas destas:
Pobre flor que mal nasceste, fatal
Foi a tua sorte, que o primeiro
Passo que deste com a morte deste.
Deixar-te é coisa triste. Cortar-te?
É coisa forte, pois deixar-te com vida
É deixar-te com a morte.
Há também poetas eróticos, o Chico Bentevi, autor do poema Os Amores de Carlos:
Chiquinha abriu sorrindo
A porta da sua alcova
E Carlos foi logo indo
Com a sede…
Uma sede excessiva! Há poetas descritivos, trovadores simples, cançonetístas ocasionais, todos com um sentimento insistente: são patriotas e sofrem injustiça porque nasceram brasileiros.
O preso Carlos, por exemplo, que se assina Carlos F. P. Nas suas trovas é insistente a preocupação de que está preso porque é brasileiro. Escolho na sua considerável obra poética uma modinha cheia de mágoas:
Meus senhores, venham ouvir
Do meu peito uma canção
Tirada por um condenado
Na casa de detenção.
Às mágoas segue-se o estribilho.
São martírios que se passam
Sofrendo profunda dor
Ser preso e condenado
Por vingança é um horror.
Se os martírios fossem enormes, era natural que o Petrarca novo não compusesse quadras; mas Carlos F. P. é feroz e continua:
Fui preso sem nenhum crime
Remetido para a detenção
Fui condenado a trinta anos
Oh! que dor de coração.
E surge afinal a preocupação, a idéia fixa:
Sou um triste brasileiro
Vítima de perseguição
Sou preso, sou condenado
Por ser filho da nação.
Há uma porção de modinhas neste gênero. A idéia constante aparece sempre, ou na primeira ou na última quadra.
Outro poeta, José Domingos Cidade, é descritivo. Como toda a gente sabe, o poema épico passou literalmente à cançoneta. Virgílio, Lucano, Voltaire e Luís de Camões, se vivessem hoje, decerto comporiam os trabalhos de Enéias, a Farsala, a Henriade e os feitios de Vasco da Gama com refrains ao fim dos versos de mais efeito.
Não há mais ninguém com coragem para ler um poema heróico, apesar de haver ainda neste mundo de contradições – heróis guerreiros. Só o povo, a massa ignara, ainda acha prazer em ver, em rimas, batalhas ou arruaças. José Domingos, no cubículo que o veda à admiração dos contemporâneos, escreveu Os Sucessos, cançoneta repinicada, para violão e cavaquinho.
Vejam o poder de descritiva de Domingos:
Dia quinze de novembro.
Antes de nascer o sol
Vi toda a cavalaria
De clavinote a tiracol.
Isso é incontestavelmente mais belo que o antigo e clássico começo épico: “Eu canto os feitos, ou as armas, ou as guerras civis”, de todos os vates e de Lucano, que por sinal começa dizendo: “Eu canto as nossas guerras mais que civis nos campos de Ematia. . .” Cidade foi mais urbano, mais imediato: cantou a refrega civil da Rua da Passagem com exagero apenas. Na segunda quadra, a descrição é soluçante:
As pobres mães choravam
E gritavam por Jesus;
O culpado disso tudo
É o Dr. Osvaldo Cruz!
Quando o homem predestinado que se chama Osvaldo Cruz pensou que José Domingos o amarrasse ao papel de carrasco em plena detenção?
Para o fim, mesmo em verso, o autor é modesto e patriota:
O autor desta modinha
É um pobre sem dinheiro
Já não declaro-lhe o nome,
Sou patriota brasileiro.
Os companheiros do Prata Preta, pessoal da Saúde, são naturalmente repentistas, tocadores de violão, cabras de serestas e, antes de tudo, garotos, mesmo aos quarenta anos. O malandro brasileiro é o animal mais curioso do universo, pelas qualidades de indolência, de sensualidade, de riso, de vivacidade de espírito. As quadras pornográficas são em número extraordinário; as que exprimem paixão são constantes, posto que o malandro não as faça senão para ser admirado pelos outros e independente de amar quer senhora das suas relações. Um gatuno afirmou-me que a modinha A Cor Morena era de seu amigo. Na Cor Morena há este pensamento de um perfume oriental:
Fui condenado
Pela açucena
Por exaltar
A cor morena…
Onde se vê o bom humour dos presos é principalmente nas quadras sobre acontecimentos políticos. O guarda Antônio Barros, que se dava ao trabalho de acompanhar as minhas horas de penitenciária voluntária, forneceu-me as seguintes remetidas por um dos detentos:
Meus amigos e camaradas
As coisas não andam boas
Tomaram Porto-Artur
Na conhecida Gamboa
Logo o Cardoso de Castro
Ao seu Seabra foi falar
Para deportar desordeiros
Para o alto Juruá
Mas eu que não sou de ferro
Meu corpo colei com lacre
Que não gosto de chalaças
Lá nos borrachas do Acre.
O exibicionismo, o reclamo, a vaidade, estas coisas que enlouquecem Sarah Bernhardt e talvez a todos nós, enlouquecem também presos. Há a princípio uma hesitação. Depois, os documentos são abundantes. Ser poeta é ser alguma coisa mais do que preso, e um negralhão capoeira, um assassino como o Bueno ou o José do Senado, após o testemunho da rima, falam mais livremente e com maior franqueza. Em duas semanas de detenção colecionei versos para publicar um copioso cancioneiro da cadeia. Há poesias de todos os gêneros, desde o lundu sensual até à nênia chorosa.
Este lundu do famoso Carlos F. P. chega a ser comovente:
Céus…meus! por piedade
Tirai-me desta aflição!
Vós!… socorrei os meus filhos
Das garras da maldição!
E o estribilho mais amargo ainda:
São horas, são horas
São horas de teu embarque
Sinto não ver a partida
Dos desterrados do Acre.
O Dr. Melo Morais, que conhece os segredos do violão, deve decerto imaginar o efeito destas palavras, à noite, na escuridão com os bordões a vibrar até às estrelas do céu…
O Amor, de resto, inunda o verso detento. Há por todos os lados choros, soluços, lábios de coral, saudades, recordações, desesperos, rogos:
Não sejas tão inclemente,
Atende aos gemidos meus.
E um encontrei eu que me repetiu, com os olhos fechados, o seu último repente:
Se eu pudesse desfazer
Tudo aquilo que está feito,
Só assim teu coração
Não veria contrafeito.
Era um rapaz pálido, como os rapazes fatais nos romances de 1850, mas com uns biceps de lutador.
Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade! Cheio de interesse, um papel que me caia nas mãos, com erros de ortografia, era para mim precioso. Mas afinal, um dia, ao sair da detenção com os bolsos cheios de quadras penitenciárias, remoendo frases de psicologia triste, encontrei no bonde um poeta dos novos, que, há vinte e cinco anos, ataca as escolas velhas.
– São uns animais! bradou ele, logo após um aperto de mão imperativo. Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com castigos corporais uma vez por mês!
Mal sabia ele que a detenção já está cheia.