“Sinfonia da noite inquieta” – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Sinfonia da noite inquieta
Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trêmulas nas campinas alagadas, pantanosas, úmidas como o ar antes do sol; as vielas, onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver… Hora de bênçãos tuas mãos sutis… A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro… Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na idéia de tê-las, a maresia, à noite entrada, nos cais da cidade umedecida pelo arrefecer…
Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida seqüestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas… Nomes de rainhas antigas… Vitrais onde pintaram condes fortes… A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável… As mãos secas uma contra a outra.
Os escrúpulos do monge que, no livro antiqüíssimo encontra, nos algarismos absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.
Praia ao sol a febre em mim… O mar luzindo a minha angústia na garganta… As velas ao longe e como andam na minha febre… Na febre as escadas para a praia… Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum – a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas…
Tudo é dos outros, salvo a mágoa de o não ter.
Dá a agulha a mim… Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos e o não se saber onde ela está metida, tudo o que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes. Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr na cômoda – supérfluas – e não há o calor de braços sonhados à roda do pescoço da mãe.
Texto publicado em Livro do Desassossego.