“Presepes” – João do Rio

joao do rio

Presepes

Deus vos salve casa santa
Onde Deus fez a morada
Onde mora o bento cálix
E a hóstia consagrada.

Que sabemos nós da Epifania? Homens de leve erudição e de fé sem vigor, andamos a sutilizar velhos textos e antigos costumes, e tanto sutilizamos que a dúvida acomete o nosso espírito e a confusão perturba a viagem dos três Reis com os vestígios das saturnais e das bodas de Caná. Nem os sacerdotes nos altares nem os eruditos em livros fartos, ninguém hoje conseguirá explicar claramente a suave aparição e a festa simples que o povo realiza, fazendo vir de alta montanha, guiados por uma estrela loira, Gaspar, Melchior e Baltasar com a oferenda de ouro, incenso e mirra para o menino que Herodes perseguirá.

Há os versículos de Mateus: “Jesus nasceu em Belém de Judá, nos tempos do rei Herodes. Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”; sabe-se que presepe significa etimologicamente estrebaria ou jaula. Os gnósticos vêm, com esses dois elementos, simbólicos, confusos; os sábios indagam de mais e, enquanto estes esterilmente escrevem páginas estéreis, os povos criam a legenda suave, e a legenda perdura, cresce, aumenta, esplende numa doce apoteose de perfumes e de bem.

Os presepes são uma criação popular. Antes dos artistas de Paris e Viena, que expõem nos salões do Campo de Marte e no Kunstlerhaus, o povo criou nos presepes o anacronismo religioso, o anacronismo que, segundo la Sizeranne, é a fé; pôs, como Breughel nos Peregrinos de Emaús e Beraud na Madalena entre os Fariseus, homens de hoje nas cenas do Velho Testamento.

Os presepes, como as telas do Renascimento, são as reconstituições religiosas com a cor local contemporânea. Os psicólogos podem psicologar num reisado a alma nacional e a intensidade da crença. Cristo para os homens simples está sempre, é a perene luz salvadora. Por isso cada presepe é um mundo onde homens e animais de todas as épocas renovam anualmente a admiração de um suave milagre.

Fui ver numa das últimas noites de chuva alguns desses mundos de religião e de tradição.

É impossível para os que viram o bumba-meu-boi realizado pelo venerável Melo Morais e o belicoso Dr. Silvio Romero, quase como uma reconstituição de costumes, imaginar o número de presepes que este ano tem o Rio. Há para mais de quarenta.

Começamos pelo presepe da Rua Frei Caneca, o Centro Pastoril, que tem uma diretoria composta dos Srs. Liberato Serra, presidente honorário; Manuel Novela, presidente; mais dos Srs. Pedro Hugo, Faria, Alfredo Belfort, Manuel de Macedo, Francisco de Paula Azevedo e Raul Machado. Os ensaios do reisado realizaram-se na Rua Formosa e os diretores alugaram a sala e a primeira alcova da casa da Rua Frei Caneca apenas para que a festa redobrasse de brilho.

A sala está toda enfeitada, com dois pequenos estrados feitos de madeira, onde devem sentar a polícia e os reporters, um defronte da outro, sempre juntos e sempre adulados.

Ao fundo ergue-se o presente que toma a alcova. O céu deste ameaça chuva; grossas nuvens algodoam a sua celestial vastidão. As estrelas, entretanto, mais o sol e mais a lua, numa doce confraternização, atravessam nuvens e azul com o brilho fulgurante das malacachetas e das velas – porque são de malacachetas as estrelas, e têm por trás uma vela providencial tanto a lua como o sol.

Da montanha a pico, por caminhos aspérrimos, vêm descendo os três reis lendários com um ar açodado de beduínos em fuga, e nessa descida, os seus olhos pintados vão vendo chalets suíços, animais no pasto, militares posteriores ao império do Tetrarca, mulherinhas gordas de avental e a luz da estrela que os guia escorrendo do céu em dois grossos fios de prata. Embaixo, no primeiro plano, há um grande movimento. De um lado, ardendo na sombra do milagre e de alguns copinhos coloridos, está o estábulo, onde se dá o mistério do nascimento de Deus; de outro, uma fachada de papel de seda, em que eu imagino ver Jerusalém, cujas portas caíram ao som das trombetas.

O Centro Pastoril tem um reisado em 3 atos, interpretado pela sras. lrma Serra, Georgina do Nascimento, Maria Fernandes, Elvira de Almeida, Elisa, Adelina, Esmeralda, Constança, Lauriana e outras meninas. Esse reisado é exatamente um auto como os fazia mestre Gil Vicente. Os personagens são o Guia, o Pastor Mestre, o Pastor, a Cigana, Diana Pastorinha, Galeguinho, Galego e Galega. O Natal é apenas o motivo da cena. Trepado na gaiola destinada à imprensa ausente, diante de gaiola policial deserta, apreciei com sabor a evolução do auto e, batendo palmas, parecia à minha alma que remontáramos quatrocentos anos, ao tempo em que d. Manuel oferecia ao Papa elefantes brancos ajaezados d’ouro e o povo acreditava com temor em Deus.

No primeiro ato trata-se da chegada dos pastores e há o canto do dia:

Salve estrela radiante
Doce infante de alegria,
Salve infante, salve aos homens,
E a doce Virgem Maria.

Depois a Cigana, no 2o ato, tem o papel preponderante: esmola, pede, abre a sacola para que as oferendas caiam, entre as graçolas do Galeguinho, e no fim ficam os pastores todos sabendo que Jesus nasceu.

Mas ouço por estes montes
Brandas vozes a cantar
Já daqui não me vou
Sem estes sons escutar.

Aí, no Centro Pastoril, a diretoria indica outros presepes. Há muitos: na Rua Frei Caneca mais dois; na Rua de Santana três, os nos 130 e 27; na Rua Bom Jardim mais dois, em S. Diogo três, e ainda em S. Clemente, em S. Cristovão, no Estácio, em Itapagipe, em Catumbi – pobres, humildes, cheios de pompa, modestos, numa diversidade curiosa e estranha. Conto numa noite só mais de quarenta.

O reisado faz-se em geral aos sábados, mas os proprietários, que têm Deus na sala, conservam as casas abertas e iluminadas.

– Dá-me licença?

– É a casa de Deus, pode entrar.

Em alguns, senhoras e crianças olham, sonolentas, o presepe ao fundo, em outros a sala está inteiramente vazia ou os vigilantes dormem na crepitação das velas. Oh! a estética dos presepes! Que assombroso charivari de datas, que fonte de idéias e de observações! Em S. Clemente vem ao estábulo um batalhão francês, no da Rua de Santana, 130, há um lago com repuxo e peixes do tamanho dos reis magos, no da Rua da Imperatriz alguns caçadores e um padre conversam com S. José; em Itapagipe encontrei uma montanha suíça com uma vaqueira perto do rei Gaspar.

– Por que fazem presepes? indago.

Uns respondem que por promessa, outros sorriem e não dizem palavra. São os mais numerosos. E a galeria continua a desfilar – presepes que parecem pombais, feitos de arminho e penas de aves; presepes todos de bolas de prata com bonequinhos de biscuit; presepes armados com folhas de latão, castiçais com velas acesas e fotografias contemporâneas, tendo por lagos, pedaços de espelho e o burro da Virgem com um selim à moderna; presepes em que no meio do capim há casas de dois andares com venezianas e caras de raparigas à janela – uma infinidade inacreditável.

O mais interessante, porém, fui encontrar na praia Formosa, centro de um cordão carnavalesco de negros baianos. Essas criaturas dão-me a honra da sua amizade. O presepe está armado no quarto da sala de visitas.É inaudito, todo verde com lantejoulas de prata.

O céu, pintado por um artista espontâneo, tem, entre nuvens, sol com uma cara raspada de americano truster, a lua, maior que o sol, a imagem da Virgem Mãe. Dois raios de filó prata bambamente pendem do azul sob o estábulo divino, iluminado a giorno. Descendo a montanha, montados em camelos, vêm os três reis magos, vestidos à turca e o rei apressado é Baltasar, o preto. Pela encosta do monte as majestades lendárias encontram, sem pasmo, ânimos imperiais quase atuais: Napoleão na trágica atitude de Santa Helena, a defunta imperatriz do Brasil, Bismarck com a sua focinheira de molosso desacorrentado, uma bailarina com a perna no ar, e um boneco de cacete, calças abombachadas e chapéu ao alto… Iluminando a agradável confusão, velas de estearina morrem em castiçais de cobre.

O grupo carnavalesco chama-se Rei de Ouros. Logo que eu apareço e das janelas escancaradas a tropa me vê, entoa a canção da entrada:

Tu-tu-tu quem bate à porta
Menina vai ver quem é
É o triunfo Rei de Ouros
Com a sua pastora ao pé.

Dentro move-se, numa alegria carnavalesca, o bando de capoeiras perigosos da Rua da Conceição, de S. Jorge e da Saúde. A sala tem cadeiras em roda, ornamentadas de cetim vermelho, cortinas de renda com laçarotes estridentes. As matronas espapaçam-se nas cadeiras, suando, e, em movimentos nervosos, agitam-se à sua vista mulatinhas de saiote vermelho, brutamontes de sapatos de entrada baixa e calção de fantasia de velho e de rei dos diabos. Há um cheiro impertinente de suor e éter floral.

– Uma calamistrança pra seu doutô! brada o Dudu, um magro, conhecido por inventar nomes engraçados, o Bruant da populaça

E a gente do reisado logo batendo palmas, pandeiros e berimbaus:

Ora venha ver o que temos di dá
Garrafas de vinho, doce de araçá.

A manifestação satisfaz. Dudu leva-me quase à força para um lugar de honra e eu vejo uma mulatinha com o cabelo à Cléo de Merod, enfiada numa confusa roupagem rubra.

– Quem é aquela?

– É Etelvina. Tá servindo de porta-bandeira…

Não era necessária a explicação. O pessoal, quebrando todo em saracoteios exóticos, cantava com as veias do pescoço saltadas:

Porta-bandeira deu siná,
Deu siná no Humaitá,
Porta-bandeira deu siná,
Deu síná tulou, tulou!

Aproveito a consideração do Dudu para compreender o presepe:

– Por que diabo põem vocês o retrato da imperatriz ali?

– A imperatriz era mãe dos brasileiros e está no céu.

– Mas Napoleão, homem, Napoleão?

– Então, gente, ele não foi rei do mundo? Tudo está ali para honrar o menino Deus.

– A bailarina também?

– A bailarina é enfeite.

– Guardo religiosamente esta profunda resposta.

Os do reisado cantam agora uma certa marcha que faz cócegas. Os versinhos são errados, mas íntimos e, sibilizados por aquela gente ingenuamente feroz, dão impressões de carícias:

Sussu sossega
Vai dromi teu sono
Está com medo diga,
Quer dinheiro, tome!

Que tem Sussu com a Epifania? Nada. Essas canções, porém, são toda a psicologia de um povo, e cada uma delas bastaria para lhe contar o servilismo, a carícia temerosa, o instinto da fatalidade que o amolece, e a ironia, a despreocupada ironia do malandro nacional.

– Mas por que, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei Baltasar aquele boneco de cacete?

– Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do Rei Baltasar porque deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente. Ora não sei se V. Sa conhece que Baltasar é pai da raça preta. Os negros da Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança chamada cungu, em que se ensinava a brigar. Cungu com o tempo virou mandinga e S. Bento.

– Mas que tem tudo isso?…

– Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga.

Rei da capoeiragem tem seu lugar junto de Baltasar. Capoeiragem tem sua religião.

Abri os olhos pasmados. O negro riu.

– V. Sa não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar, Marinho da Silva, Manuel Piquira, Ludgero da Praia, Manuel Tolo, Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho, outros…Esses “cabras” sabiam jogar mandinga como homens…

– Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepadas…

– Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V. Sa pelas pernas e viro – V. Sa virou balão e eu entrei debaixo. Se eu cair virei boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa mais. Mas posso arrastar-lhe uma tarrafa mestra.

– Tarrafa?

– É uma rasteira com força. Ou esperar o degas de galho, assim duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o bauú, pontapé na pança. Ah! V. Sa não imagina que porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama-se banda, quando com força tarrafa, quando no ar para

bater na cara do cabra meia-lua.

– Mas é um jogo bonito! fiz para contentá-lo.

– Vai até o auô, salto mortal, que se inventou na Bahia.

Para aquela lição tão intempestiva, já se havia formado um grupo de temperamentos bélicos. Um rapazola falou.

– E a encruzilhada?

– É verdade, não disseste nada de encruzilhada?

E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar.

Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes:

Meu rei de Ouros quem te matou?
Foi um pobre caçadô.

Mas Dudu saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas. E diante do quarto, onde se confundia o mundo em adoração a Deus, o negro cantou, acompanhado pelo coro:

Já deu meia-noite
O sol está pendente
Um quilo de carne
Para tanta gente!

Oh! suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati, álcool, fantasia, talvez o amor nascido de todas aquelas danças e do insuportável cheiro do éter floral.

Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes dera o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um quilo de carne para tanta gente!

Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.

De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de sonho sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre eterna e vivaz, saudando o natal de Deus através da ingenuidade dos pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus poderoso!

Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas a esperança de amanhã obter um quilo de carne só para mim!