“Pátria nova” – Olavo Bilac
Pátria nova
Era dia de descanso no grande engenho. Todas as máquinas estavam paradas, todos os instrumentos de trabalho guardados.
A missa findara; da capela, em bandos alegres, vestindo as suas melhores roupas, saíam as famílias, para o passeio e o folguedo.
Sozinho, fincando os cotovelos nos joelhos, e repousando a cabeça nas mãos, um colono já quase velho, mas homem robusto ainda, em cuja cabeleira ruiva começavam a aparecer os primeiros cabelos brancos, — cismava, alheado a tudo, insensível ao barulho de festa que ia pelas casas da colônia.
Formosa, aquela manhã! No fundo azul do céu recortavam-se as montanhas de um verde quente, e, à beira do riacho, que cantava, sobre as pedras e as ervas rasteiras esmaltadas de flores silvestres, voavam os pássaros, tontos de tanta luz. O sol dava um brilho novo às vidraças das casas, batia em chapa sobre as ardósias dos telhados, e animava toda a paisagem de uma alegria comunicativa, que se apoderava de todas as almas. Era domingo. As últimas pancadas festivas do sino morriam docemente na paz risonha do arredor.
Mas o colono continuava a cismar, sozinho, afastado da gente que se divertia…
É que um dia como aquele (havia justamente dez anos!) saíra ele de sua aldeia natal, sob o céu napolitano, — em busca de terras que com menos avareza recompensassem a fadiga de seu trabalho.
Agora, novas terras, nova natureza, gente nova, dias de febre e de esperança primeiro, dias de conforto e de fartura depois, — não lhe haviam permitido o desejo de voltar a sofrer em vão, sem proveito, sobre a terra ingrata, que não tinha pão bastante para dar a tanta gente que lhe pedia… mas ninguém esquece a sua terra, por mais pobre, por mais triste que ela seja! E o colono evocava a recordação do dia em de que lá saíra, — e revia todos os aspectos familiares da linda aldeia: as crianças nuas e espertas que se arrastavam no pó, os velhos que ficavam às portas apoiados nos bordões, os rapazes que o sol queimava, e as raparigas robustas que iam com eles para o penoso ofício das lavouras. E uma grande tristeza lhe pesava sobre o coração cheio de saudades…
Mas nesse momento alguém se aproximou dele. Era uma forte mulher, ainda no verdor da idade, trazendo ao colo uma criança. Chegou, pousou a mão no ombro do colono que se absorvia na meditação, e despertou-o da cisma:
— Que é isso, pai? Já o procuramos por toda parte… Que tem? Por que foge de nós num dia como este, e vem aqui ficar, sozinho, com a sua tristeza?
— É justamente por causa do dia de hoje que me vês triste, filha — disse ele. — É possível que te não tenhas lembrado que foi neste dia, há dez anos, que saímos de nossa terra?
Uma nuvem de melancolia sombreou a face da rapariga. Esteve durante alguns segundos calada, ajeitando a ponta do chalé, para livrar dos raios do sol o rosto do pequenino que dormia. Depois, olhando com amor a face triste do pai, respondeu:
— Como não havia de me lembrar, pai! Logo de madrugada, comecei a pensar nisso… estive revivendo o dia em que saí de lá, solteira ainda, deixando as companheiras dos meus folguedos de criança… estive contemplando, em imaginação, o cemitério da nossa aldeia, em que está a sepultura de minha mãe… como é que eu poderia não ter saudades? Mas calei-me, e disfarcei, para não lhe dar essa mágoa, pai… pensei que não se lembrasse!
— Lembro-me, filha, lembro-me bem! Quem esquece a sua terra não tem coração!
Ficaram calados ambos. Depois, a filha continuou:
— Mas escute, pai! Por que há de ficar triste? Mais vale esquecer, e viver feliz, gozando a fortuna que o seu trabalho lhe está dando aqui! Ouça! Eu, por mim, estou disposta a não pensar mais nisso: foi aqui que vi felizes todos os meus, foi aqui que casei, foi aqui que nasceu meu filho, o seu neto… Por que é que não hei de amar esta terra, como se ela fosse minha?
O colono olhou fixamente a filha:
— Como?! Pois tu és capaz de esquecer a tua terra?
Ela hesitou um momento; mas logo em seguida, com voz firme, disse:
— Não! Esquecer não posso… não posso… mas diga-me: a terra de lá é que é a sua, e é que é a minha… qual é, porém, a desta criança que aqui está, que nasceu aqui e que vai crescer ignorando a língua que nós mesmos já vamos esquecendo, e vendo todos os dias, da infância à idade madura e à velhice, esta Pátria da liberdade e da riqueza? Olhe! E veja como ela bate palmas, contente, a este sol que a viu nascer!
De fato, a criança acordara. Piscava os olhinhos, entre as pálpebras gordas, sentindo o calor do sol, e agitava-se, rindo, no colo da rapariga.
O homem sentiu os olhos úmidos, e, tomando a criança nos braços, exclamou:
— Tens razão, filha! Esta é a terra de teu filho, esta é a Pátria do meu neto: por que é que não há de ser também a nossa terra?
E, alegre, levantando e abaixando a criança, no ar, com os seus braços robustos, começou a brincar com ele, dizendo-lhe, com o seu acento napolitano:
— Bravo, brasileirinho! Bravo, brasileirinho!…
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)