“Os Que Começam” – João do Rio
Os Que Começam
Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de pontas de cigarros, crias de famílias necessitadas, simples vagabundos à espera de complacências escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que irão obumbrar as galerias da detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar, contando que são o sustento de uma súcia de criminosos que a polícia não persegue.
A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena, oposicionista e vendo em cada homem importante uma roubalheira. São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.
A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.
À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais. Fazem tudo isso com vagar. Quando um ponto se torna insustentável vão para outros, e há entre eles relações, morféias que se ligam às úlceras, olhos em pus que olham com ternura companheiros sem braços, e todos guardando a data do desastre que os mutilou, que os fez entrar para a nova vida com a saudade da vida passada.
Fui encontrar na ponte das barcas Ferry alguns de volta de Niterói. Vinham alegres, batendo com as muletas, a sacolejar os fartos sacos, na tarde álgida. Só nessa tarde interroguei seis: Francisco, antigo peralta da Saúde; Antônio, jovem de dezoito anos, que, graças à falta de uma perna, trabalha desde os doze; Pedro, pardinho crispinhento, que ri como um suíno e é o curador de uma senhora idosa; João Justino, sem um braço, e pequenos Felismino e Aurélio. Voltavam de mendigar.
Francisco é atroz. Míope, com a cara cheia de sulcos, a boca enorme e sem dentes, fuma cigarros empapados de saliva e tagarela sem descontinuar.
– Qual! Niterói não dá nada. Às vezes tenho que pedir emprestado para voltar. O xará não permite porém mendigo sem realejo. Eu sou fino. Vou para outro lugar.
– Quantas vezes estiveste na cadeia?
– Eu? não senhor! nunca! É verdade que uma vez fui preso por um inspetor viciado… Mas não estava fazendo nada. Também não me incomodo. Vou, torno a sair. E, sem transição: não imagina as vezes que tenho sido pegado. O Dr. Paula Pessoa, quando era delegado, já dizia: para pegar essas inutilidades? E eu só esperando. Olhe – morrer de fome é que eu não morro.
– Então já estiveste preso?
Quantas vezes! É preferível a cadeia ao tal Asilo. Antônio é outro gênero, o gênero dulçoroso, cheio de humildades açucaradas. Repete logo como uma nota policial o esmagamento da perna. Foi a 11 de novembro de 1897, na esquina da Rua da Uruguaiana. Caiu às 2 e 20 da tarde, quando passava o bonde chapa tanto.
E diz essas coisas vagamente magoado como se chorasse sem sentir. Mas mente, inventa nomes, faz-me jurar que não lhe farei mal, entrega-se à minha proteção, de que depende a sua vida, com uma detestável e beata hipocrisia. Era ajudante de pedreiro. Após o desastre mandaram-no esmolar no Passeio Público. O pai é trabalhador, ganha quatro mil e quinhentos, tem oito filhos e a mulher doente.
Ele ajuda com o dinheiro das esmolas. É um dos casos de formação de caráter, de inversão moral. Adolescente, forte, musculosa, a permanência na mendicidade deu-lhe à voz melopéias suspirosas e um recheio de votos pela sorte alheia. Não fala um segundo sem pedir a Deus que nos ajude, sem agradecer em nome de Deus a nossa bondade.
– Ai! Nossa Senhora, juro por Deus que todo o desejo que tenho é trabalhar. .
Simples blague. Dêem-lhe um emprego e rejeitará, inutilizado pela vida de sarjeta, de desbrio, de inconsciente sem-vergonhice a que o forçou o pai.
Esse bando, porém, é evidentemente defeituoso; ganha dinheiro, como se estivesse empregado para sustentar a família. Há o outro, o maior, o infindável, que a polícia parece ignorar, a exploração capaz de emocionar os delegados nos dramalhões, a indústria da esmola infantil exercida por um grupo de matronas indignas e de homens criminosos, as criancinhas implumes, piolhentas e sujas, que saem para a rua às varadas, obrigadas ao sustento de casas inteiras; há a exploração lenta, que ensina os pequenos a roubar e as meninas a se prostituirem; o caftismo disfarçado, que espanca, maltrata e extorque. É um vasto tremedal a que a retórica sentimental nada adianta, cujo mal a segurança pública não quer remediar. Basta ter a simples curiosidade para mergulhar nesse caleidoscópio infinito de cenas torturantes de uma mesma ação, basta parar a uma esquina e ouvir a narração dessas tragédias vulgares e de fácil remédio.
A série de meninas é enorme, desde as cínicas de face terrosa às ingênuas e lindas.
– Como se chama você?
– Elisinha, sim senhor.
É parda: tem nove anos.
Embrulhada nuns farrapos, a tremer com os beicinhos roxos e as mãos no ar, muito aflita, parece que lhe vão bater. Mora na Rua Frei Caneca.
Não vai para a casa, não pode ir. A madrinha bate-lhe, tem o corpo cheio de equimoses.
– Quando não arranjo bastante para a madrinha e as filhas, dão-me sovas!
Destes casos há muitos com diversas modalidades. Jovita, por exemplo, pede esmola com uma bandeja dizendo que é missa pedida ou promessa feita. A mulher que a criou e a explora, a terrível megera Maria Trapo Velho, mora na Rua São Diogo e dá-lhe conselhos de roubo.
– Ela diz que, quando encontrar roupas ou outros objetos, meta no saco. Quando passo uma semana sem levar nada, põe-me de castigo, com os joelhos em cima do milho e sem comer.
Rosinha mora na Rua Formosa. Sai acompanhando uma senhora que finge de cega. A mãe é negra; ela é alva e todos ficam admirados!
Judite, com oito anos, moradora à Rua da Lapa, andava com o pai pelo subúrbio, tocando realejo. O pai fingia-se de cego, e como um cidadão descobrisse a patifaria, é ela só quem esmola, atacando as senhoras, pedindo algum dinheiro para a mãe moribunda. Laura e Amélia, filhas da senhora Josefina, têm um irmão que aprende o ofício de carpinteiro, moram na Rua da Providência e passam o dia a arranjar dinheiro para a mamã mais o padrasto.
– E o padrasto, que faz?
– Dá pancada na gente quando não se anda direito.
Estela, mulatinha, vive com uma dama que se diz sua avó, na Rua Senador Eusébio. As vezes fica até às dez horas da noite à porta da Central, esmolando. Nicota, moradora no Pedregulho, tem treze anos e perigosa viveza de olhar. A puberdade, a languidez dos membros rijos dão-lhe receitas grandes. É mandada pelo padrasto, um português chamado Jerônimo, que a industria. Explora a miséria no jardim de Eros, fazendo tudo quanto a não prejudica definitivamente, à porta dos quartéis, pelos bairros comerciais, ao escurecer. Confessa que vai abandonar o Jerônimo pelo sargento Gomes, a quem ama. A lista não tem fim, é o mesmo fato com variantes secundárias.
Se nessas crianças encontramos o abismo da perdição a tragá-las, nos pequenos vemos um grande esboço de todos os crimes.
Em quatro dias interrogamos noventa e seis garotos, estrangeiros, negros, mulatos, uma sociedade movediça e dolorosa. Há desde os pequenos que sustentam famílias até os gatunos precoces que se deixam roubar na vermelhinha à beira do cais, entre murros e cachações.
O primeiro a encontrarmos é o negrinho Félix, morador à Rua do Costa, órfão, que vive na casa de uma família. Como as coisas estão más, sai de sacola, a esmolar e a roubar. Já esteve preso por apanhar várias amostras de uma loja, mas um moço da polícia, que gosta de uma das meninas da casa, soltou-o.
– Que fazes hoje?
– Hoje tenho que roubar um queijo. Sinhazinha diz que não apareça sem um queijo.
Armando, petiz de dez anos, diz-se italiano por causa das dúvidas. Pára no Largo da Sé e, ingenuamente, conta que a família não faz comida há três anos. É ele que arranja tudo, fora os cobres. José Vizuvi, também italiano, é filho do conhecido mendigo Vizuvi. Sai da Rua do Alcântara, onde mora, às 5 da manhã, à procura dos pães que os padeiros costumam deixar nas janelas e à porta de certas casas. Quando a janela é alta serve-se de um pau em forma de ferrão. O pai ensina-o a roubar. Dudu de Oliveira passa o dia no Mercado e nos bairros centrais. A mãe, fingindo-se de cega, esmola no Largo do Machado. Ele leva recados suspeitos e propõe-se a misteres ignóbeis.
João Silva, morador à Rua Senador Pompeu, com treze anos, também serve para esses serviços pouco asseados. A mãe, sem emprego, é espancada pelo amante que lhe arranca todo o dinheiro. Franzino, doloroso, esse pretinho na ânsia da vida sustenta um caften reles. Todos esses nomes ignorados escondem dramas pungentes, cenas de horror, vidas perdidas.
A observação de tantos casos não me dava o tipo do explorador, não me mostrava os peralvilhos que vivem à custa das pobres crianças, receosas de me mostrar as casas onde são torturadas. Encontrei-o, porém, o tipo ideal, o drama resumo de um estado social, a tragédia soluçante que cada vez mais se alastra.
Logo no começo da Rua Uruguaiana há uma mulher de cor branca, fisionomia torva, sempre embiocada em panos pretos. Chamam-na a Cameleão, alcunha que lhe ficou do peralta do filho. Esse ente repelente tem uma estalagem, um prédio; é rica e pede esmola, provando ser viúva pobre. Quando encontra crianças, leva-as para a casa, um doloroso centro de lenocínio e velhacaria, a extorqui-las. Presentemente tem cinco petizes, todos menores de doze anos; três meninos, Alfredo, Felipe e Narciso, e duas meninas, Gertrudes e Madalena. As criancinhas saem pela manhã, voltam para almoçar, tornam a sair e só voltam à noite, para o interrogatório e a palmatória.
Um dos pequenos mostrou-me o ogre horrendo. Arrastava-se com uma voz pastosa e, quando me viu, trêmula curvou-se.
– Pelo amor de Deus! uma esmola para os desgraçadinhos!
Os desgraçadinhos, na tarde chuvosa, pareciam transidos.
O vento fustigava-lhes as carnes seminuas e eles, agarrados uns aos outros, na fraternidade do sofrimento, sem pai, sem mãe, sem amparo, erguiam os olhos para o céu numa angustiosa súplica.