“O Mimoso” – D. João Câmara
O Mimoso
Esta frio — dizia ele subindo o Chiado.
Era um homem de 40 anos, magro, quase cadavérico, de melenas tão compridas e tão esquecidas de pente que se lhe emaranhavam nas barbas, de olhos negros, encovados, de olhar oblíquo e desconfiado, a luzirem com fome por cima das olheiras papudas.
Era no inverno e ele com a mão ossuda, engrifada, apertava contra o peito a sobrecasaca rota, sem botões. Não trazia colete e a camisa era um frangalho. Como se precisa ter gravata para entrar nos passeios, onde não desgostava de ir à tarde apanhar um bocado de sol, trazia um pedacinho de pano azul pregado no colarinho sem goma com um alfinete de ferro. As botas rotas, sem tacões, tinham, a tapar-lhes os buracos, camadas sobrepostas de lama seca.
Parou à porta do Baltresqui.
Um janota sentado a uma das mesinhas do café, diante de uma garrafa de Pere Kermanns, aspirava o fumo aromático de um charuto pequenino. Passados momentos, tirou o relógio da algibeira, viu as horas, engoliu de um trago as últimas gotas do cálice e, chamando o criado pelo nome, atirou-lhe uma nota de dez mil-réis. Quando o criado voltou com o troco, levantou-se deixando o cobre em cima da mesa.
— Muito obrigado, Sr. visconde — disse o criado, dando-lhe piparotes na manga do sobretudo suja pela cinza do charuto, que o visconde quebrara na borda da mesa.
— E um visconde — observou distraidamente o homem das botas rotas.
E como o visconde voltasse para cima, seguiu-o à espera que deitasse fora a ponta do charuto. Ia apertando a sobrecasaca contra o peito e invejando o casaco do visconde, comprido, felpudo, de grande gola, que se podia levantar e abrigava as orelhas do frio.
O visconde subia o Chiado devagarinho, com as mãos nas vastas algibeiras, tirando do charuto abundantes fumaças, com aquele sorriso de satisfação, que dá a certos par — vos de bom estômago a digestão de um bom jantar.
O pobre diabo tinha fome. Almoçara na véspera; depois não tinha comido.
Mas o que mais o apoquentava era o apetite de fumar.
O fumo adormece a fome e expulsa a melancolia. Pode-se dormir, quando se tem um cigarro na algibeira e o fumo de um outro enchendo o quarto. O tabaco é o veneno rei dos venenos, um elixir que mata lentamente, que embriaga, que sossega os nervos que enfraquece a memória e dá às pernas uma preguiça deliciosa, que faz achar boa a cama pela manhã, quando o ar está cheio de neblina e na rua afogada em lama se ouvem os pregões e o sussurro dos que têm que fazer, dos que trabalham.
— Por isso Deus, que afinal é bom — ia o homem pensando — encheu as ruas de pontas de charuto para os homens e de talos de couve para os cães, que não fumam, que não têm que esquecer, que são tolos.
Mas a noite estava chuvosa e as pontas de charuto não se viam, enterradas na lama pelas rodas das carruagens. Por isso seguia o ricaço, ansioso pelo momento em que o charuto havia de cair espalhando em torno uma chuva de faisquinhas.
O visconde parava de vez em quando, apertando a mão aos amigos que desciam.
— Então que se faz? — perguntavam-lhe.
E ele só encolhia os ombros como resposta àquela pergunta ociosa e tola. O homem notou:
— Pois ele não terá nada, mesmo nada, que fazer?
Comparou-se com o visconde e sentiu uma certa vaidade.
Porque ele trabalhava, fazia alguma coisa. Se lhe perguntassem o quê, talvez não respondesse logo, assim sem pensar, sem examinar um instante com olhar desconfiado o fim com que lhe faziam a pergunta. As vezes, quando se levantava, não tinha de comer; era preciso arranjá-lo e arranjava-o. Era talvez pouco escrupuloso; isso sim.
— Mas — pensava — para se terem delicadezas é preciso alguma coisa na algibeira.
E isso era raro, muito raro.
Decididamente, se alguém lhe perguntasse: Então que se faz? — havia de responder como o visconde, encolhendo os ombros.
Depois, como se toda esta cadeia de pensamentos o tivesse conduzido a uma conclusão certíssima, olhou para o janota, a rir-se, com certo ar maganão, e exclamou baixinho, como quem faz uma descoberta:
— Olá!
E, apontando com o dedo polegar para o visconde, disse piscando o olho a si mesmo:
— E cá dos meus.
Chegado à rua Nova dos Mártires, o visconde parou um instante, tirou o relógio da algibeira e, aproximando-se de um candeeiro, tornou a ver as horas. Esteve um momento como que indeciso sobre o que havia de fazer; por fim dobrou a esquina e dirigiu-se para São Carlos.
Tirou as luvas da algibeira e começou a calçá-las.
— Quando deitará ele fora o charuto? — pensava o homem.
Mas de repente afirmou a vista e os olhos faiscaram-lhe: o visconde ao tirar as luvas da algibeira deixara ficar o lenço com a pontinha de fora.
Contraiu um pouco as sobrancelhas meditando.
Valeria apena um lenço? Tinha fome. Aquele lenço representava talvez a ceia. Seria triste na verdade; o que poderia valer um lenço?
Estendeu o lábio inferior.
Era preciso tomar uma resolução.
Ora, adeus! Mais valia do que morrer de fome.
Aproximou-se nos bicos dos pés.
Olhou para todos os lados. A rua era deserta.
O coração bateu-lhe um pouco. O visconde podia senti-lo, defender-se, gritar, e ele iria preso, com fome, e passaria a noite a tiritar de frio, fechado num calabouço.
Ânimo!
Meteu a mão esquerda por debaixo da aba do sobretudo.
O visconde cantarolava:
C’est q’çá gli… iiis… se.
Vitória! O lenço era dele!
O homem não tinha sentido nada e acabava a cópia:
Encore un qui n’l’aura pas
La timbale
La timbale.
***
Um lenço! Ia finalmente comer. Tinha ganho o dia.
E o lenço era um bom lenço, muito branco, muito novo.
Mirou-o e remirou-o.
Não tinha uma só passagem e era de seda.
Era de seda! Queria dizer que representava talvez mais do que a ceia.
Quanto poderia valer aquilo?
O homem chegou-se a um bico de gás e pôs-se a olhar. De vez em quando, coçava com a unha a asa do nariz, sinal certo de dúvida.
O Gomes é que lho poderia dizer. O Gomes era muito entendido; um pouco ladrão, mas muito entendido.
E já esquecido do visconde e do charuto, voltou e dirigiu-se para a Calçada do Duque.
A casa de penhores era à esquerda, uma casa pequena, asfixiante, cheia de fato até à porta.
O Gomes estava por detrás do balcão, encostado aos livros, com a sua suíça à inglesa, a caneta atrás da orelha, e o seu sorriso protetor.
Um candeeiro de petróleo, com vidro sujo e luz econômica, alumiava fracamente as roupas inúteis, que nas prateleiras até ao teto esperavam tristemente pela traça ou pelo próximo leilão.
Uma guitarra sem cordas pendia de um prego ao lado de uma serra. Do outro lado, o retrato de um bom velho burguês e calvo, com a barba cerrada, ar de pessoa de bem, e um botão de ouro, quadrado, no peitilho da camisa, sorria com bondosa satisfação para um cacho de botas velhas, que, suspensas do teto, se lhe balouçavam a dois palmos do nariz. Tinha valido um dinheirão, valia agora cinco tostões.
O homem parou à porta e pôs-se à espreita.
— Muito boas noites, Sr. Gomes.
— Olá!
— Dá licença?
Atirou o lenço para cima do balcão.
— Faça favor de ver isso.
E, à espera que o exame do lenço acabasse, entreteve se a olhar para uma borboleta, que esvoaçava em torno do candeeiro.
O Gomes desdobrou o lenço, sacudiu-o, levantou um pouco a torcida e começou um exame minucioso, palpando, virando e revirando a seda.
— Isto de bordados… Um A e uma coroa…
E o Gomes sorriu-se, esforçando-se por ter um ar inteligente.
— Foi o Sr. visconde que mo deu para o empenhar — disse o outro, encolhendo os ombros com impaciência.
— Pois, amigo, diga ao Sr. visconde que isto pouco valor tem. O bordado é bom, o bordado tem valor; mas a quem pode isto servir? Quer três tostões?
— Traste!… — resmungou o homem. — Então só vale?… O Sr. Gomes, olhe que roubar é feio. Faça favor de reparar que é de seda.
O Gomes, desdenhoso, atirou com o lenço.
— Dê-me um cruzado e vou-me embora.
— Homem, você parece que não sabe quem eu sou!
E pôs 12 vinténs em cima do balcão.
— Traste! — tornou a resmungar o homem, pegando nos 12 vinténs e encaminhando-se para a porta.
— Quer cautela? — perguntou o Gomes com ar de brincadeira, já desmanchando o bordado com o bico duma tesoura.
— Nada. Obrigado. O Sr. visconde não me falou em cautela.
E saiu sempre a resmungar.
***
Poucas horas depois, estava estirado ao pé duma sarjeta.
Caía uma chuva miúda e fria e ele sonhava.
Sonhava que tinha roubado um lenço de seda, duma seda muito fina, tão fina que nem o Gomes sabia ao princípio o que lhe havia de dar pelo lenço. E tinha-lhe dado a loja toda, as botas, a guitarra, o ouro que estava na gaveta do balcão, o dinheiro que estava na cômoda, tudo. E ele era rico. Andava de trem e bebia no Baltresqui uma coisa com bolhazinhas a subirem e que fazia soltar as rolhas das garrafas. Os janotas do Chiado tratavam-no por tu e os gaiatos davam-lhe dom. O visconde era muita amigo dele e oferecia-lhe charutos magníficos, que roubava a um estanqueiro muito velho da rua dos Canos. Tinha um sobretudo cor de canela, muito quente e andava de luvas. Morava num palácio e tinha na sala o retrato do velho que estava na loja do Gomes, e que era pai dele, e do outro lado estava o retrato do outro pai, do que tinha conhecido, do que lhe dava pancadas quando ele era pequeno. E o Gomes vinha pedir-lhe esmola. Estava muito magro. O lenço não era de seda, era de papel. E ele tinha um cão muito grande, com olhos de lume, que mordia no Gomes, e o Gomes chorava.
— Leva arriba!
Um polícia de voz áspera acordou-o com um pontapé.
E, como o homem resmungava, meteu-lhe a mão por debaixo dos braços e obrigou-o a levantar-se.
— Marche adiante e nada de cerimônias.
Fora dia de grande gala e as luminárias morriam nos preguinhos do governo civil.
O homem percebia tudo um pouco vagamente. Sentia-se empurrado e via as luminárias.
Aquilo entristecia-o.
Perguntaram-lhe o nome e ainda teve forças para murmurar com voz avinhada:
— Francisco Antônio, o Mimoso.
Quando, pela madrugada, acordou, cheio de frio e de fome, meteu a mão trêmula na algibeira das calças e murmurou com voz triste e arrependida:
— Fiz mal.
E depois dum instante de reflexão:
— Devia ter comprado um macinho de cigarros.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)