“O meu revólver” – D. João Câmara

João Câmara

O meu revólver

Em dezembro. O sol morria depois de curta vida. A tarde era fria e o vento cortava.
Triste, cansado, depois de um dia inútil, voltava para casa silenciosamente, mastigando um charuto insuportável.
Pesava-me como cruz de ferro a ociosidade que não pudera combater.
A melancolia apoderara-se de mim. Envolvia-me a alma como que num lençol úmido e frio.
Bandos de operários voltavam do trabalho alegres, sossegados, interrompendo com cantigas de fado as conversações políticas.
Irritou-me a alegria deles.
Eu caminhava de cabeça baixa; mas só mal definidos pensamentos se atropelavam no meu espírito, sem razão, como sucede nos sonhos inquietos.
Vagas saudades do passado, desejos mal definidos de outro tempo… Tudo triste, triste.

***

Subi a escada íngreme, que levava ao meu quarto andar, e achei-me em casa, sem quase me lembrar do caminho que seguira.
Os últimos raios de sol entrando pela janela entreaberta morriam, faltos de forças, alumiando fracamente uns velhos retratos de família, imóveis, havia muito, nas molduras carunchosas.
Estava só.
Ainda bem.
Puxei de uma cadeira e sentei-me à janela, resolvido a esperar com paciência a noite, que ao mesmo tempo desejava e temia.
A atmosfera era úmida e pesada.
Na rua havia profundo silêncio.
O ocidente, carregado de nuvens negras, orladas por uma franja dourada, parecia o pano enorme dum caixão de gigante.
As nuvens cresciam impelidas pelo vento da barra, ameaçando breve toldar o céu.
Luziu a primeira estrela.
Contemplei-a com amor, lembrando-me de que ainda ninguém àquela hora tivesse dado por ela. Estaria talvez no céu brilhando tão só para mim.
E senti não sei que satisfação íntima com aquela ideia: para mim só.
Pus-me a contemplá-la com amor, a falar-lhe como um poeta; e ela consolou-me, e, durante toda aquela tarde, foi este o único momento em que tive amor à vida.
Um empregado do gás passou pela rua acendendo os candeeiros e assobiando uma polca.
Ouvi uma voz por cima da minha cabeça.
— Menina Maria! Menina Maria!
Era o meu vizinho da trapeira, um empregado de uma casa de penhores, feio, bexigoso e raquítico.
— Está o gás aceso. São horas de começarmos a conversar.
Numa janela do outro lado da rua apareceu a cabeça pálida de uma rapariga, que de dia namorava o boticário e de noite conversava com o bexigoso.
— Muito boas noites.
A menina Maria começou a fazer-lhe sinais querendo dizer, creio eu, que adiasse para mais tarde as declarações de amor, fosse eu ouvi-las.
— O quê? — perguntava o bexigoso. — Não percebo. Pena estar o tempo de chuva.
— É pena, é! Pouco poderemos conversar. Daqui a pouco… Olhe, não vê? Estão as nuvens quase tapando aquela estrela.
E apontou para a estrela, que fora até ali o meu enlevo.
Dei um murro no parapeito da janela e fechei-a desesperado.

***

A nuvem negra, para provar que o bexigoso não era tolo de todo, deixou cair como prólogo de maior chuveiro, uns poucos de grossos pingos de água, que vieram bater tristemente nos vidros da janela.
Acendi o velho candeeiro de azeite e recostei-me numa poltrona de oleado, onde dei largas aos merencórios pensamentos.
Decididamente odiava vida.
E que me prendia a ela? Fora uma cadeia de ouro a outros tempos, mas viera a desgraça quebrar-lhe, um a um, os elos todos.
— A morte!
E maquinalmente puxei do revólver.
Era uma joiazinha americana, bonita, de sistema engenhoso, com fechos de prata, que me saíra num bazar de caridade.
— Eis o remédio para quantos males se sofrem no mundo — pensei. — Uma pouca de coragem, um pequeníssimo movimento… e nada mais é preciso.
Comecei a brincar com o gatilho.
— De que serve uma vida a que pode dar fim coisa tão pouca?
E, como para convencer-me de que não havia nada mais fácil, aproximei da boca o cano do revólver.
E vi que tinha medo e que me repugnava a morte.
Lembrei-me do frio da terra e do contato da carne com os corpos frios e moles dos bichos nos cemitérios. E requintei na fantasia as sensações da longa fileira dos rígidos cadáveres, que via dormindo na vala comum o sono doloroso da morte.
Passou-me um calafrio pelo corpo, ergui-me, levantei a gola do casaco e comecei a passear pelo quarto.
Os velhos retratos metidos na sombra da bandeirola pareceram-me espectros.
Um, sobre todos, lembra-me, causou-me horror estranho, naquela noite.
Era um cônego velho, gordo, sem barba, com uma coroa de cabelos grisalhos em torno duma calva lisa e amarela. Tinha uns olhos azuis, pequeninos, que se fitavam na gente para onde quer que se fugisse.
Quando eu era pequeno, tinha um dia virado o cônego de cabeça para baixo, para ver se assim parava a perseguição do seu olhar. Meu avô, que naquele momento entrara no quarto, ralhou muito comigo, que fora uma falta de respeito, que o cônego era meu tio, que fora homem de muito saber e que até compusera uma gramática latina com a prosódia em verso.
E eu, que detestava a prosódia e o latim, comecei desde logo a detestar o tio.
Naquela noite pareceu-me que os olhos azuis e pequeninos cintilavam, fosforescentes.
Recuei com um calafrio, procurando fugir ao pesadelo.
E os seus olhos pequeninos, azuis, fosforescentes continuaram a seguir-me com pertinácia.
Passei a mão pela testa e trouxe-a úmida de suor frio.
Dei volta à bandeirola do candeeiro e, cheio de falsa coragem, aproximei-me do retrato.
Estava louco!
— Sou um cobarde! Tenho a cobardia duma criança — pensei.
Fui ao armário de pau preto, envidraçado, onde tinha uma garrafa com um resto de absinto.
Um caruncho, com aquele ruído monótono e compassado, que tanto se ouve nas casas velhas, incumbira-se da agradável tarefa de esfarelar uma prateleira.
E eu sentia dentro em mim uma tempestade! E se me tivesse suicidado, se junto daquele armário se houvesse passado um drama horrível, ele teria placidamente, com a maior indiferença, continuado a morder voluptuosamente a madeira ressequida, em sua obra de destruição.
Abri a garrafa. Bebi sofregamente.
Pela segunda vez aproximei da boca, voltando as costas ao cônego, o cano do revólver.
Senti abrir-se a janela do bexigoso e ouvi-lhe a voz esganiçada:
— Menina Maria! Parou a chuva.
Salvou-me a vida. Escutando-o, quis despedir-me da voz humana. No curto momento, em que o meu antipático vizinho levou a dizer aquela frase, entrou-me n’alma o receio.
Decididamente sou um cobarde, um grande cobarde! Preciso beber.
E saí, metendo o revólver na algibeira.

***

Pela segunda vez na vida o bexigoso falara sem dizer tolice. Efetivamente cessara a chuva, e apenas umas nuvens brancas, com grandes manchas duma cor mais carregada, formavam castelos fantásticos, entre os quais corria a lua a toda a brida.
Ao dobrar duma esquina encontrei um amigo.
— Aonde vais? — disse-me. — Até São Carlos?
Pareceu-me ofensa a pergunta e estive para responder-lhe:
— Não, vou matar-me.
Mas não quis. Dizer-lhe para quê? Se não podia perceber-me?
— Vou sem destino — disse.
— Já jantaste?
— Ainda não.
— Jantaremos juntos nesse caso.
E deu-me o braço e começamos a descer a rua.
E eu ia pensando com uma certa alegria no jantar e comecei a ver a morte sob outro aspecto: o suicídio depois de bem comido, numa sala bonita, quente, alumiada fortemente por dois lustres de gás.
Que diferença! Que admirava que me tivesse faltado a coragem naquele quarto frio e úmido quando eu estava possuído da tristeza da fome? Frio e fome por toda a eternidade!…
Entrei no hotel cantarolando um bocado da minha ópera favorita.
Defronte de nós uns americanos bebiam champanha, veuve Cliquot.
Grande vinho, o champanha! não achas? — disse o meu amigo.
— Magnífico
— Havemos de vir bebê-lo aqui um dia destes pena não poder ser hoje.
— Por quê?
Não respondeu e corou até às pontas das orelhas.
E eu achei que para dar coragem nada havia como o champanha.
E pus-me a passar revista a todas as suas boas qualidades, e por fim achei que eram tantas e tantas, que, esquecido da morte… fui pôr o revólver no prego.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)