“O Mártir Jesus” – Alcântara Machado
Extraído do livro Laranja da China
O Mártir Jesus
(Senhor Crispiniano E. de Jesus)
De acordo com a tática adotada nos anos anteriores Crispiniano B. de Jesus vinte dias antes do carnaval chorou miséria na mesa do almoço perante a família reunida:
– As cousas estão pretas. Não há dinheiro. Continuando assim não sei aonde vamos parar!
Fifi que procurava na Revista da Semana um modelo de fantasia bem bataclã exclamou mastigando o palito:
– Ora, papai! Deixe disso…
A preta de cabelos cortados trouxe o café rebolando. Dona Sinhara coçou-se toda e encheu as xícaras.
– Pra mim bastante açúcar!
Crispiniano espetou o olhar no Aristides. Espetou e disse:
– Pois aí está! Ninguém economiza nesta casa. E eu que agüente o balanço sozinho!
A família em silêncio sorveu as xícaras com ruído. Crispiniano espantou a mosca do açucareiro, afastou a cadeira, acendeu um Kiss-Me-De-Luxo, procurou os chinelos com os pés. Só achou um.
– Quem é que levou meu chinelo daqui?
A família ao mesmo tempo espiou debaixo da mesa. Nada. Crispiniano queixou-se duramente da sorte e da vida e levantou-se.
– Não pise assim no chão, homem de Deus!
Pulando sobre um pé só foi até a salinha do piano. Jogou-se na cadeira de balanço. Começou a acariciar o pé descalço. A família sentou-se em torno com a cara da desolação.
– Pois é isso mesmo. Há espíritos nesta casa. E as cousas estão pretas. Eu nunca vi gente resistente como aquela da Secretaria! Há três anos que não morre um primeiro-escriturário!
Maria José murmurou:
– É o cúmulo!
Com o rosto escondido pelo jornal Aristides começou pausadamente:
– Falecimentos. Faleceu esta madrugada repentinamente em sua residência à Rua Capitão Salomão n.0 135 o Senhor Josias de Bastos Guerra, estimado primeiro-escriturário da…
Crispiniano ficou pálido.
– Que negócio é esse? Eu não li isso não!
Fifí já estava atrás do Aristides com os olhos no jornal.
– Ora bolas! É brincadeira de Aristides, papai.
Aristides principiou uma risada irritante.
– Imbecil!
– Não sei por que…
– Imbecil e estúpido!
Da copa vieram gritos e latidos desesperados. Dona Sinhara (que ia também descompor o Aristides) foi ver o que era. E chegaram da copa então uivos e gemidos sentidos.
– O que é, Sinhara?
Não é nada. O Totónio brigando com Seu-Mé por causa do chinelo.
– Traga aqui o menino e ponha o cachorro no quintal!
O puxão nas orelhas do Totónio e a reconquista do chinelo fizeram bem a Crispiniano. Espreguiçou-se todo. Assobiou mas muito desafinado. Disse para Fifi:
– Toque aquela valsa do Nazaré que eu gosto.
– Que valsa?
– A que acaba baixinho.
Carlinhos fez o desaforo de sair tapando os ouvidos.
As meninas iam fazer o corso no automóvel das odaliscas. Idéia do Mário Zanetti pequeno da Fifi e primogênito louro do Seu Nicola da farmácia onde Crispiniano já tinha duas contas atrasadas (varizes da Sinhara e estômago do Aristides).
Dona Sinhara veio logo com uma das suas:
– No Brás eu não admito que vocês vão.
– Que é que tem de mais? No carnaval tudo é permitido…
– Ah! é? Êta falta de vergonha, minha Nossa Senhora!
Maria José (segunda-secretária da Congregação das Virgens de Maria da paróquia) arriscou uma piada pronominal:
– Minha ou nossa?
– Não seja cretina!
Jogou a fantasia no chão e foi para outra sala soluçando.
Totónio gozou esmurrando o teclado.
O contínuo disse:
– Macaco pelo primeiro.
Abaixou a cabeça vencido. Sim, senhor. Sim, senhor. O papel para informar ficou para informar. Pediu licença ao diretor. E saiu com uma ruga funda na testa. As botinas rangiam. Ele parava, dobrava o peito delas erguendo-se na ponta dos pés, continuava. Chiavam. Não há cousa que incomode mais. Meteu os pés de propósito na poça barrenta. Duas fantasias de odalisca. Duas caixas de bisnaga. Contribuição para o corso. Botinas de cinqüenta mil-réis. Para rangerem assim. Mais isto e mais aquilo e o resto. O resto é que é o pior. Facada doída do Aristides. Outra mais razoável do Carlinhos. Serpentina e fantasia para as crianças. Também tinham direito. Nem carro de boi chia tanto. Puxa. E outras cousas. E outras cousas que iriam aparecendo.
Entrou no Monte de Socorro Federal.
Auxiliado pela Elvira o Totónio tanta malcriação fez, abrindo a boca, pulando, batendo o pé, que convenceu Dona Sinhara.
– Crispiniano, não há outro remédio mesmo: vamos dar uma volta com as crianças.
– Nem que me paguem!
O Totónio fantasiado de caçador de esmeraldas (sugestão nacionalista do Doutor Andrade que se formara em Coimbra) e a Elvira de rosa-chá ameaçaram pôr a casa abaixo. Desataram num choro sentido quebrando a resistência comodista (pijama de linho gostoso) de Crispiniano.
– Está bem. Não é preciso chorar mais. Vamos embora. Mas só até o Largo do Paraíso.
Na Rua Vergueiro Elvira de ventarola japonesa na mão quis ir para os braços do pai.
– Faça a vontade da menina, Crispiniano.
Domingo carnavalesco. Serpentinas nos fios da Light. Negras de confete na carapinha bisnagando carpinteiros portugueses no olho. O único alegre era o gordo vestido de mulher. Pernas dependuradas da capota dos automóveis de escapamento aberto. Italianinhas de braço dado com a irmã casada atrás. O sorriso agradecido das meninas feias bisnagadas. Fileira de bondes vazios. Isso é que é alegria? Carnaval paulista.
Crispiniano amaldiçoava tudo. Uma esguichada de lança-perfume bem dentro do ouvido direito deixou o Totónio desesperado.
– Vamos voltar, Sinhara?
– Não. Deixe as crianças se divertirem mais um bocadinho só.
Elvira quis ir para o chão. Foi. Grupos parados diziam besteiras. Crispiniano com o tranco do toureiro quase caiu de quatro. E a bisnaga do Totónio estourou no seu bolso. Crispiniano ficou fulo. Dona Sinhara gaguejou revoltada. Totónio abriu a boca. Elvira sumiu.
Procura-que-procura. Procura-que-procura.
– Tem uma menina chorando ali adiante.
Sob o chorão a chorona.
– O negrinho tirou a minha ventarola.
Voltaram para casa chispando.
Terça-feira entre oito e três quartos e nove horas da noite as odaliscas chegaram do corso em companhia do sultão Mário Zanetti.
Crispiniano com um arzinho triunfante dirigiu-lhes a palavra:
– Ora até que enfim! Acabou-se, não é assim? Agora estão satisfeitas. E temos sossego até o ano que vem.
As odaliscas cruzaram olhares desalentados. O sultão fingia que não estava ouvindo.
Maria José falou:
– Nós ainda queríamos ir no baile do Primor, papai…
Será possível?
– Hã? Bai-le do Pri-mor?
Dona Sinhara perguntou também:
– Que negócio é esse?
– É uma sociedade de dança, mamãe. Só famílias conhecidas. O Mário arranjou um convite pra nós…
Deixaram o sultão todo encabulado no tamborete do piano e vieram discutir na sala de jantar.
(Famílias distintas. Não tem nada demais. As filhas de Dona Ernestina iam. E eram filhas de vereador. Aí está. Acabava cedo. Só se o Crispiniano for também. Por nada deste mundo. Ora essa é muito boa. Pai malvado. Não faltava mais nada. Falta de couro isso sim. Meninas sem juízo. Tempos de hoje. Meninas sapecas. O mundo não acaba amanhã. Antigamente – hem Sinhara? – antigamente não era assim. Tratem de casar primeiro. Afinal de contas não há mal nenhum. Aproveitar a mocidade. Sair antes do fim. É o último dia também. Olhe o remorso mais tarde. Toda a gente se diverte. São tantas as tristezas da vida. Bom. Mas que seja pela primeira e última vez. Que gozo.)
No alto da escada dois sujeitos bastante antipáticos (um até mal-encarado) contando dinheiro e o aviso de que o convite custava dez mil-réis mas as damas acompanhadas de cavalheiros não pagavam entrada.
Tal seria. Crispiniano rebocado pelo sultão e odaliscas aproximou-se já arrependido de ter vindo.
– O convite, faz favor?
– Está aqui. Duas entradas.
O mal-encarado estranhou:
– Duas? Mas o cavalheiro não pode entrar.
Ah! isso era o cúmulo dos cúmulos.
– Não posso? Não posso por quê?
– Fantasia obrigatória.
E esta agora? O sultão entrou com a sua influência de primo do segundo vice-presidente. Sem nenhum resultado. Crispiniano quis virar valente. Que é que adiantava? Fifi reteve com dificuldade umas lágrimas sinceras.
– Eu só digo isto: sozinhas vocês não entram!
O que não era mal-encarado sugeriu amável:
– Por que o senhor não aluga aqui ao lado uma fantasia?
Crispiniano passou a língua nos lábios. As odaliscas não esperaram mais nada para estremecer com pavor da explosão. Todos os olhares bateram em Crispiniano B. de Jesus. Porém Crispiniano sorriu. Riu mesmo. Riu. Riu mesmo. E disse com voz trêmula:
– Mas se eu estou fantasiado!
– Como fantasiado?
– De Cristo!
– Que brincadeira é essa?
– Não é brincadeira: é ver-da-de!
E fez uma cara tal que as portas do salão se abriram como braços (de uma cruz).