“O Lírico Lamartine” – Alcântara Machado
Extraído do livro Laranja da China
O Lírico Lamartine
(Desembargador Lamartine de Campos)
Desembargador. Um metro e setenta e dois centímetros culminando na careca aberta a todos os pensamentos nobres, desinteressados, equânimes. E o fraque. O fraque austero como convém a um substituto profano da toga. E os óculos. Sim: os óculos. E o anelão de rubi. É verdade: o rutilante anelão de rubi. E o todo de balança. Principalmente o todo de balança. O tronco teso, a horizontalidade dos ombros, os braços a prumo. Que é que carrega na mão direita? A pasta. A divina Temis não se vê. Mas está atrás. Naturalmente. Sustentando sua balança. Sua balança: o Desembargador Lamartine de Campos.
Aí vem ele.
Paletó de pijama sim. Mas colarinho alto.
– Joaquina, sirva o café.
Por enquanto o sofá da saleta ainda chega para Dona Hortênsia. Mas amanhã? No entanto o desembargador desliza um olhar untuoso sobre os untos da metade. O peso da esposa sem dúvida possível e o índice de sua carreira de magistrado. Quando o desembargador se casou (era promotor público e tinha uma capa espanhola forrada de seda carmesim) Dona Hortênsia pesava cinqüenta e cinco quilos. Juiz municipal: Dona Hortênsia foi até sessenta e seis e meio. Juiz de direito: Dona Hortênsia fez um esforço e alcançou setenta e nove. Lista de merecimento: oitenta e cinco na balança da Estação da Luz diante de testemunhas. Desembargador: noventa e quatro quilos novecentas e cinqüenta gramas. E Dona Hortênsia prometia ainda. Mais uns sete quilos (talvez nem tanto) o desembargador está aí está feito Ministro do Supremo Tribunal Federal. E se depois Dona Hortênsia num arranque supremo alargasse ainda mais as suas fronteiras nativas? Lamartine punha tudo nas mãos de Deus.
– Por que está olhando tanto para mim? Nunca me viu mais gorda?
– Verei ainda se a sorte não me for madrasta! Vou trabalhar.
A substância gorda como que diz: Às ordens.
Duas voltas na chave. A cadeira giratória geme sob o desembargador. Abre a pasta. Tira o Diário Oficial. De dentro do Diário Oficial tira O Colibri. Abre O Colibri. Molha o indicador na língua. E vira as páginas. Vai virando aceleradamente. Sofreguidão. Enfim: CAIXA DO O COLIBRI. Na primeira coluna: nada. Na segunda: nada. Na terceira: sim. Bem embaixo: PAJEM ENAMORADO (São Paulo) – Muito chocho o terceto final do seu soneto SEGREDOS DA ALCOVA. Anime-o e volte querendo.
Não?
Segunda gaveta à esquerda. No fundo. Cá está.
Arquejo e palpito e suspiro e gemo
Na doce febre do divino gozo!
Chocho?
Releitura. Meditação (a pena no tinteiro). Primeira emenda: mordendo em lugar de beijando.
Chocho?
Declamação veemente. Segunda emenda: lebre ardente em lugar de doce febre.
Chocho?
Mais alma. Mais alma.
A imaginação vira as asas do moinho da poesia.