“O gado do Valha-me Deus” – Bernardo Guimarães
O gado do Valha-me Deus
Sim, para além da Grande Serra do Valha-me Deus, há muito gado perdido nos campos que, tenho para mim, se estendem desde o Rio Branco até as bocas do Amazonas! Já houve quem o visse nos campos que ficam pra lá da margem esquerda do Trombetas, de que nos deu a primeira notícia o padre Nicolino, coisa de que alguns ainda duvidam, mas todos entendem que, a existir tal gado, nessas paragens, são reses fugidas das fazendas nacionais do Rio Branco. Cá, o tio Domingos tem outra ideia, e não é nenhuma maluquice dos seus setenta anos puxados até o dia de São Bartolomeu, que é isso a causa de todos os meus pecados, ainda que mal discorra; tanto que se querem saber a razão desta minha teima, lá vai a história tão certa como se ela passou, que nem contada em letra de forma, ou pregada do púlpito, salvo seja em dia de sexta-feira maior. O tio Domingos Espalha chegou à casa dos setenta sem que jamais as unhas lhe criassem pintas brancas, e os dentes lhe caíram todos sem nunca haverem mastigado um carapetão, isso o digo sem medo de que traste nenhum se atreva a chimpar-me o contrário na lata.
Pois foi, já vão bons quarenta anos ou talvez quarenta e cinco, que nisto de contagem de anos não sou nenhum sábio da Grécia, tinha morrido de fresco o defunto padre Geraldo, que Deus haja na sua santa glória, e cá na terra foi o dono da fazenda Paraíso, em Faro, e possuía também os campos do Jamari, onde bem bons tucumãs-açus eu comi no tempo em que ainda tinha mobília na sala, ou, salvo seja, dentes esta boca que nunca mentiu, e que a terra fria há de comer.
Padre Geraldo fez no seu testamento uma deixa da fazenda ao Amaro Pais que levava toda a vida de pagode em Faro, e aqui em Óbidos, e nunca pôde contar as milhares de cabeças que o defunto padre havia criado no Paraíso, e que passavam pelas mais gordas e pesadas de toda esta redondeza.
Não que o visse, não senhores, eu não vi; mas todos gabavam o asseio com que o padre criava aquele gado, que era mesmo a menina dos seus olhos, a ponto de passar quinze anos de sua vida sem comer carne fresca, por não ter ânimo de mandar sangrar uma rês. Quando fui contratado para a fazenda, já o defunto havia dado a alma a Deus por causa dumas friagens que apanhara embarcado e de que lhe nascera um pão de frio, bem por baixo das costelas direitas, não havendo lambedor, nem mezinha que lhe valesse, porque, enfim, já chegara a sua hora, lá isso é que é verdade.
Havia um ano que a fazenda Paraíso estava, por assim dizer, abandonada, porque o Amaro nunca lá aparecia, senão para se divertir, atirando ao gado, como quem atira a onças e fazendo-se valente na caçada dos pobres bois, criaturas de Deus, que a ninguém ofendem, porque, enfim, isso lá duma pequena marrada de vez em quando é para se defenderem e experimentarem o peito do vaqueiro, porque o boi sempre é animalzinho que embirra com gente maricas. As proezas do Amaro Pais tinham feito embravecer o gado, que, por fim, já ninguém era capaz de o levar para a malhada, e ainda menos de o meter no curral, o que era pena para um gadinho tão amimado pelo padre Geraldo, um verdadeiro rebanho de carneiros pela mansidão, que era mesmo de se lavar com um bochecho para não dizer mais, e a alma do padre lá em cima havia de estar se mordendo de zanga, vendo as suas reses postas naquele estado pelo estrompa do herdeiro, que fazia dor de coração.
Não pensem que eu agora digo isto para me gabar, pois quem pensar o contrário não tem mais do que perguntar aos moleques do meu tempo a razão porque me deram o apelido de Domingos Espalha, que era porque nenhum vaqueiro da terra, do Rio Grande, ou de Caiena me aguentava no repuxo da vaqueação; eu era molecote ainda, mas quando se tratava de alguma fera difícil, era o Domingos Espalha que se ia buscar onde estivesse, porque ninguém melhor do que ele conhecia as manhas do gadinho, e segurava-se melhor na sela sem estribos nem esporas, à moda da minha terra, donde vim pequeno mas já entendido nestes assados.
Pois para a festa de São João, que o Amaro Pais ia passar na vila, queria ele uma vaca bem gorda para comer, e me incumbia a mim e ao Chico Pitanga de tomarmos conta da fazenda, assinalar o gado orelhudo, e remeter a vaca a tempo de chegar descansada nas vésperas da festa, o que me parecia a mim que era a tarefa mais à toa de que me encarregara até então, embora os outros vaqueiros me dissessem que havia de perder o meu latim com o tal gadinho de uma figa.
O Chico Pitanga e eu entramos na montaria, levando um par de cordas de couro feitas por mim mesmo com corredeiras de ferro, um paneiro de farinha e um frasco de cachaça da boa, feita de farinha de mandioca, que era de queimar as goelas e consolar a um filho de Deus.
Abicamos ao porto do Paraíso às seis horas da tarde, recolhemo-nos à casa por ser já tarde para procurar o gado, que, entretanto, ouvíamos mugir a pequena distância, e parecia estar encoberto por um capão de mato. Fizemos a nossa janta de pirarucu assado e farinha, não mostramos cara feia à aguardente de beiju e ferramos num bom sono toda a noite até que pela madrugada saímos em busca do gado, montando em pelo dois cavalos da fazenda que encontramos pastando perto do curral. Qual gado, nem pera gado! Batemos tudo em roda, caminhamos todo o santo dia, e eu já dizia pra o Chico Pitanga que a fama do Espalha tinha espalhado a boiama, quando lá pelo cair da tarde fomos parar à ilha da Pacova-Sororoca, que fica bem no meio do campo, a umas duas léguas da casa grande. Bonita ilha, sim senhores, é mesmo de alegrar a gente aquele imenso pacoval no meio do campo baixo, que parece um enfeite que Deus Nosso Senhor botou ali para se não dizer que quis fazer campo, campo e mais nada. Bonita ilha, sim senhores, porém muito mais bonita era a vaca que lá encontramos, deitada debaixo de uma árvore, mastigando, olhando pra gente muito senhora de si, sem se afligir com a nossa presença, parecia uma rainha no seu palácio, tomando conta daquela ilha toda, com um jeito bonzinho de quem gosta de receber uma visita, e tem prazer em que a visita se assente debaixo da mesma árvore, goze da mesma sombra, e descanse como está descansando. Não, senhores, não tinha nada de gado bravo a tal vaquinha, grande, gorda, roliça de fazer sela, negra da cor da noite, com um ar de tão boa carne que o diacho do Chico Pitanga ficou logo de água da boca, e vai não vai prepara laço para lhe botar nos madeiros, com perdão da palavra. Me bateu uma pancada no coração, dura como acapu, de não sei que me parecia ofender aquela vaca tão gorda e lisa, que ali estava tão a seu gosto, querendo meter a gente no coração com os olhos brandos e amigos, sem cerimônia nenhuma e muito senhora de si, e disse pra o Chico que aquilo era uma vergonha pra mim ser mandado como o vaqueiro mais sacudido a amansar aquele gado bravo, e por fim de contas segurar a primeira vaca maninha que encontrava, como qualquer curumim sem prática da arte; mas o tinhoso falou na alma de meu companheiro, que sem mais aquela atirou o laço e segurou os cornos da vaca. Ela, coitadinha, se empinou toda, deixando ver o peito branco, com umas tetinhas de moça, palavra de honra! E eu para não parecer que receava o lance, botei-lhe a minha corda também. Olhem que corda tecida por mim é dura de arrebentar, pois arrebentaram ambas como se fossem linha de coser, só com um puxão que a tal vaquinha lhes deu, e vai senão quando, com a força, cai a vaca no chão e fica espichada que nem um defunto.
Cá pra mim, que conheço as manhas do povo com que lido, disse logo que aquilo era fingimento, e botei-me pra ela pra a sujeitar pelos chifres, que para isso pulso tinha eu, não é por me gabar. Mas qual fingimento, nem meio fingimento! A vaca estava morta e bem morta, como se a queda lhe tivesse arrebentado os bofes, apesar de eu a ter visto, havia tão pouco tempo, viva e sã como nós aqui estamos, mal comparando, o que mostra que o homem não é nada neste mundo.
Mas era tão nova a morte, e havia já mais de uma semana que não comíamos senão pirarucu seco, que aquela gordura toda me fez ferver o sangue, me deu uma fome de carne fresca, que parecia que já tinha o sal na boca, da baba que me caia pelos beiços abaixo; trepei acima da vaca, e sangrei-a na veia do pescoço, e logo o Chico Pitanga lhe furou a barriga, rasgando-a dos peitos até as maminhas, com perdão de vosmecês. O diacho da vaca, dando um estouro, arrebentou como uma bexiga cheia de vento, e em vez de aparecer a carne fresca, era espuma e mais espuma, uma espuma branca como algodão em rama, que saia da barriga, dos peitos, dos quartos, do lombo, de toda parte enfim, pois que a vaca não era senão ossos, espuma e couro por fora, e acabou-se; e logo (me disse depois o Chico Pitanga) o demônio da rês começou a escorrer choro pelos olhos, como se lhe doesse muito aquela nossa ingratidão.
Largamos a rês no campo, e como já se ia fazendo tarde, voltamos de corrida para a casa, onde dormimos sabe Deus como, sem cear, é verdade, porque a malvada espuma me tinha revirado as tripas, que tudo me fedia.
Mal veio a madrugada, fomos caminho da ilha da Pacova-Sororoca,
À procura da vacada, levando cada um o seu saquinho cheio de farinha d’água, e outro de sal, para a demora que houvesse, e vimos uma grande batida de gado, em roda do lugar onde havíamos deixado na véspera o corpo da vaca preta, mostrando que eram talvez para cima de cinco mil cabeças, mas não achamos uma só rês, nem mesmo a tal vaquinha assassinada por nós.
Me ferveu o sangue, e eu disse pra o Chico Pitanga:
— Isto também já é demais. Ou eu hei de encontrar os diabos das reses, ou não me chame Domingos Espalha.
E botando-nos no campo, busca daqui, bate de lá, vira dali, corre pra cá, até que pela volta do meio-dia descobrimos o rasto, uma imensa batida, com as pegadas no chão, que se estava vendo que o gado passara ali naquele instantinho, e tivemos certeza de que eram mais de cinco mil cabeças, pois a estrada era larga como o Amazonas aqui defronte, e as pegadas unidas miúdo, miúdo, de gado muito apertado que foge a toda a pressa, com os cornos no rabo uns dos outros: e vosmecês desculpem esta minha franqueza, que eu nunca andei na escola. A batida ia direito, direito para o centro das terras, e vai o Chico Pitanga disse: “Seu Espalha, a bicharia passou ainda agorinha”. E nos botamos a toda a brida, seguindo o rastro, sempre vendo sinais certos da passagem da vacada, mas sem encontrar vivalma no caminho.
Já estávamos cansados da vida, mais mortos do que outra coisa, nos apeamos e sentamos à beira do Igarapé dos Macacos para nos refrescarmos com um pouco de chibé. Vinha caindo a noite, e do outro lado do Igarapé, no meio de um capinzal de dez palmos de altura, ouvíamos mugir o gado, tão certo como estarem vosmecês me ouvindo a mim, com a diferença que nós tivemos um alegrão, e tratamos de dormir depressa para acordarmos cedo, bem cedinho, e irmos cercar os bois do Amaro Pais que daquele feito não nos haviam de escapar, ainda que tivesse eu de botar os bofes pela boca fora, ficando estirado ali no meio do campo.
Eu nunca na minha vida passei nem hei de passar, com perdão de Deus, uma noite tão feia como aquela! Começou a chover uma chuvinha miúda, que não tardou em varar as folhas do ingazeiro que nos cobria, de forma que era o mesmo que estarmos na rua; os pingos d’água, rufando no arvoredo, caíam duros e frios nas nossas roupas já úmidas de suor, e punham-nos a bater queixo, como se tivéssemos sezões; logo logo começou a boiada a uivar, parece que chorando a morte da maninha, que fazia um berreiro dos meus pecados, com a diferença que era um choro que parecia de gente humana, e nos dava cada sacudidela no estômago que só por vergonha não solucei, ao passo que o maricas do Chico Pitanga chorava como um bezerro, que metia dó. Aquilo estava bem claro que a vaca preta era a mãe do rebanho, e como nós a tínhamos assassinado, havíamos de aguentar toda aquela choradeira.
Por maior castigo ainda os cavalos pegaram medo daquele barulho, romperam as cordas, e fugiram tão atordoados que nos deram grande canseira para os agarrar, e nisso levamos a noite toda, sem pregar olho nem descansar um bocado. Quando vinha a madrugada, passamos o Igarapé dos Macacos e entramos no capinzal, que era a primeira vez que avistávamos aquelas paragens, que já nem sabíamos quantas e quantas léguas estávamos da fazenda Paraíso, navegando naquele sertão central. Era um campo muito grande que se estendia a perder de vista, quase despido de árvores, distanciando-se apenas de longe em longe no meio do capinzal verde as folhas brancas das imbaúbas, balançadas pelo vento para refrescar a gente no meio daquela soalheira terrível, capaz de assar um frango vivo.
Vimos perfeitamente o lugar onde o gado passara a noite, um grande largo, com o capim todo machucado, mas nem uma cabecinha pra remédio! Já tinham os diachos seguido seu caminho sempre deixando atrás de si uma rua larga, aberta no capinzal, em direção à Serra do Valha-me Deus, que depois de duas horas de viagem começamos a ver muito ao longe, espetando no céu as suas pontas azuis. Galopamos, galopamos atrás deles, mas qual gado, nem pera gado, só víamos diante da cara dos cavalos aquele imenso mar de capim com as pontas torradas por um sol de brasa, parecendo sujas de sangue, e no fundo a Serra do Valha-me Deus, que parecia fugir de nós a toda a pressa. Ainda dormimos aquela noite no campo, a outra e a outra, sempre seguindo durante o dia as pegadas dos bois, e ouvindo à noite a grande choradeira que faziam a alguns passos de distância de nós, mas sem nunca lhes pormos a vista em cima, nem um bezerro desgarrado, nem uma vaquinha preguiçosa! Eu já estava mesmo levado da carepa, enojado, triste, desesperado da vida, cansado na alma de ouvir aquela prantina desenfreada todas as noites, sem me deixar pregar o olho, e o Chico Pitanga cada vez mais pateta, dizendo que aquilo era castigo por termos assassinado a mãe do gado; ambos com fome, já não podíamos mover os braços e as pernas, galopando, galopando por cima do rasto da boiada, e nada de vermos coisa que se parecesse com boi nem vaca, e só campo e céu, céu e campo, e de vez em quando bandos e bandos de marrecas, colhereiras, nambus, maguaris, garças, tuiuiús, guarás, carões, gaivotas, maçaricos e arapapas que levantam o voo debaixo das patas dos cavalos, soltando gritos agudos, verdadeiras gargalhadas por se estarem rindo do nosso vexame lá na sua língua deles. E os cavalos cansados, trocando a andadura, nós com pena deles, a farinha acabada, de pirarucu nem uma isca, sem arma para atirar nos pássaros, nem vontade para isso, sem uma pinga da aguardente, sem uma rodela de tabaco, e a batida do gado espichando diante de nós, cada vez mais comprida, para nunca mais acabar, até que uma tarde, já de todo sem coragem, fomos dar com os peitos bem na encosta da Serra do Valha-me Deus, onde nunca sonhei chegar, e bem raros são os que se têm atrevido a aproximar-se dela.
Mas o diacho das pegadas do gado subiam pela serra acima, trepavam em riba uma das outras até se perder de vista, por um caminho estreito que volteava no monte e parecia sem fim. Ali paramos, quando vimos aquele mundo da Serra do Valha-me Deus, que ninguém subiu até hoje, nos tapando o caminho, que era mesmo uma maldição; pois se não fosse o diacho da serra, eu cumpriria a minha promessa ainda que tivesse de largar a alma no campo.
Nunca vi cachorro mais danado do que eu fiquei. Voltamos para trás, moídos que nem mandioca puba em tipiti, curtindo oito dias de fome da farinha e sede de aguardente, até chagarmos à fazenda Paraíso, e só o que eu digo é que: nunca encontrei gado que me desse tanta canseira.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)