“O Colar” – Guy de Maupassant

Guy de Maupassant

O Colar

Era uma dessas moças, que, por acaso do destino, nascem lindas, com distinção, de atitudes verdadeiramente encantadoras, em uma família pobre e desconhecida. Não tinha dote nem lhes apareceu meio algum de se tornar socialmente estimada, compreendida e amada por um homem rico e da alta classe. E escolheu para esposo um modestíssimo escrevente do ministério da Instrução Pública.
Então, não podendo ves­tir-se bem, ela submeteu-se a andar como uma burguesinha humilde. Mas, sabendo-se boni­ta, isso fazia-a se sentir livre dos rótulos sociais; porque as mulheres não têm casta, nem raça: a beleza, o encanto pessoal serve-lhe de nas­cimento e de família. Sua aristo­cracia natural, sua instintiva elegância, sua agilidade de espírito constituem a única hierarquia e fazem da mais ínfima filha do povo uma fidalga.
Sentindo-se digna de todas as delicadezas e todos os luxos, Matilde não se podia confor­mar com a existência quase miserável que sempre tivera e, embora, nada dissesse a seu marido, sofria; sofria pela pobreza de sua casa, pela simplicidade de seus móveis. Todas essas coisas que as mulheres de seu grupo social geralmente não notam, torturavam-na, indignavam-na. O aspecto da criada humilde que a servia, despertava nela desgostos devastadores e pen­samentos amargos. Ela sonhava com antecâmaras forradas com tapeçarias orientais, iluminadas por altos lampadários de bronze, tendo, de um e ou­tro lado, lacaios com librés irrepreensíveis. Sonhava com salões cheios de móveis luxuosos, cobertos de bibelôs raros, um quarto de vestir perfumado e discreto, vestidos leves, translúcidos, disfarçando o luxo real sob uma gra­ça frágil e sutil.
Quando se sentava para jantar, com a me­sa coberta por uma toalha de três dias, dian­te de seu marido, que des­cobria a sopeira, dizendo encantado — “Oh!… sopa de legumes! Não há outra de que mais goste” — Matilde sonhava com uma prataria cintilante e cristais de Boêmia, pensava em pratos deliciosos, servida em baixelas magnífi­cas.
Não tinha trajes finos, não possuía joias e sentia falta de tudo isso como se sempre os tivesse co­nhecido e apenas na véspera a tivessem privado de tais regalias. Tinha uma amiga rica, uma antiga companheira de colégio, que desposara um milionário, mas deixara de visitá-la, tanto sofria a cada vez em que voltava de seu palacete.
***
Ora, uma tarde, seu marido voltou da repartição com ar radiante e orgulhoso, trazendo na mão um largo envelope.
— Olha o que te trouxe — disse ele.
Ela rasgou rapidamente o invólucro e leu:
“O ministro da Instrução Pública convida o sr. e a sra. Loisel para um baile que se realiza segunda-feira, 18 de setembro, no palácio do mi­nistério”.
Em vez de pular de contente, como seu marido esperava, ela atirou o cartão sobre a mesa, murmurando com mau humor:
— Que queres que eu faça com isso?
— Mas, minha querida, pensei que tu ias ficar tão satisfeita! Tu nunca sais, não tens distrações… Custou-me tanto arranjar esse con­vite… Já deves imaginar que não os dão a todos os funcionários… E todos querem… É uma excelente ocasião para que vejas a alta sociedade, o mundo oficial…
Ela fitava-o com olhar irritado e disse afinal, com impaciência:
— E com que vestido queres tu que eu vá a uma festa destas?
Guilherme Loisel não tinha pensado nis­so. Balbuciou:
— Aquele vestido com que vais ao teatro, às vezes… Parece-me que, com ele…
Calou-se estupefato vendo que Matilde chorava…
— Mas que é isso? Que tens?…
Com violento esforço, ela conseguira dominar as lágrimas e foi num tom quase calmo que respondeu enxugando as faces:
— Nada. Não tenho uma roupa decente e, por conseguinte, não posso ir a essa festa. Dá o convite a algum de teus colegas cuja mulher tenha ao menos um vestido para eventos como esses.
Guilherme estava desolado. Re­fletiu um pouco e decidiu afinal:
— Espera, Matilde. Quanto poderá custar um vestido… muito simples… mas enfim, com que pos­sas ir, segunda-feira… e… sirva tam­bém para outras ocasiões?…
Ela meditou alguns segundos, fazen­do cálculos, detida pelo receio de pedir uma quantia que “assustasse” seu ma­rido.
Por fim, hesitando ainda, disse:
— Não sei ao certo mas creio que com quatrocentos francos eu poderia me arranjar.
Ele, por sua vez, hesitou… An­dava justamente planejando tirar de suas economias uma quantia mais eu menos assim para comprar uma espingarda de caça, que há muito desejava. Mas desejava também tanto ver sua Matilde alegre…
— Está bem — disse ele — dar-te-ei os quatrocentos francos.
***
Mas na véspera da festa, Matilde se mos­trou de novo ansiosa e triste… Seu vestido es­tava pronto, que poderia pois afligi-la assim? Seu marido interrogou-a, inquieto.
— O que me aborrece — explicou ela — é não ter uma joia… O vestido está muito boni­to; mas, sem uma joia, fica tão sem graça…
— Põe flores — propôs Guilherme.
— Não é a mesma coisa… Com certeza serei a única mulher sem joias na festa.
Mas o marido bateu na testa, de repente e exclamou com ar triunfante:
— Mas que tolice! Tens um meio tão sim­ples. Por que não procuras tua amiga, Madame Forestier. Com certeza ela não terá dúvida em te emprestar uma ou duas joias. Dada a intimidade que tens com ela…
— É verdade! — exclamou Matilde num grito de alegria. — E eu que não tinha me lem­brado disso!
No dia seguinte, logo pela manhã, cor­reu à casa de sua amiga. Madame Forestier pôs sobre a mesa de toalete uma larga caixa de sândalo e, abrindo-a, disse simplesmente:
— Escolhe, minha querida.
Trêmula de emoção, Matilde colocou-se diante do espelho e experimentou braceletes, uma cruz veneziana, um colar de pérolas e sem tirá-las, não custava decidir… Notando sua he­sitação, a amiga disse:
— Vê tudo… Há outras aí.
Matilde curvou-se de novo para a caixa e descobriu em um pequeno cofre de veludo um colar de diamante tão grandes, tão belos, que seu coração palpitou de desejo. As mãos tremiam-lhe quando passou essa joia em torno do pesco­ço alvo e esbelto. Depois ficou imóvel, em êxtase.
— Foi isso o que mais te agradou? — per­guntou Madame Forestier com um sorriso indul­gente.
Madame Loisel balbuciou ainda receosa:
— Podes me emprestar este?
— Pois claro… este ou outro qualquer…
Matilde abraçou e beijou a amiga num ímpeto de reconhecimento e retirou-se quase cor­rendo.
***
A festa foi para ela um triunfo. Ela foi, no evento, a mais bonita, de uma graça incomparável, de uma ele­gância senhoril e deliciosa. Todos os homens a fitavam com enlevo, perguntavam seu nome, queriam ser-lhe apresentados… O próprio minis­tro notou-a e dirigiu-lhe um cumpri­mento galante.
E todos disputavam a “honra” de dançar com ela. E Matilde, inebriada, sem pensar em coisa alguma, gozava unica­mente a vitória de sua beleza, esse triunfo tão doce ao coração de todas as mulhe­res.
Só se retirou às quatro horas da manhã. Desde a meia noite, seu esposo cochilava em um pequeno salão, com outros maridos preguiçosos.
Ele colocou sobre seus ombros a capa que trouxera para a saída, uma capa cuja po­breza contrastava com a elegância de seu vesti­do. Ela, notando-o, quis fugir a fim de evitar os olhares das outras senhoras, que se envolviam em mantas de veludo ou imponentes vestimentas.
Loisel tentava detê-la.
— Espera. Matilde. Olha que podes te resfriar. Eu vou buscar um carro.
Porém ela, sem ouvi-lo, descia rapidamente a escada. Chegando à rua, não encontraram car­ro disponível e tiveram que descer ao longo do Sena. Por fim viram um carro de passeio, um desses táxi que só andam em Paris durante a noite, como se tivessem vergonha de aparecer duran­te o dia. Esse carro levou-os até sua casa na rua dos Mártires e eles subiram tristemente até seu terceiro andar. Matilde tirou a capa e colocou-se diante do espelho, para se ver mais uma vez.
E, de súbito, soltou um grito cheio de angús­tia. O colar desaparecera de seu pescoço.
Seu marido, já quase despido, vultou-se em sobressalto.
— Que foi?
— Perdi o colar
— Como? — exclamou ele, lívido de horror. — Como?… Nossa Senhora! Não é possível!
Procuraram nas dobras e ornatos do vestido, no chão…
— Estás certa de que tinhas ainda, ao sair do ministério?
— Apalpei-o ao entrar no vestuário.
— Mas não pode ter caído na rua. Te­ríamos ouvido qualquer ruído. Só se foi no carro.
— Sim… provavelmente… Você não teve a ideia de tomar nota do número….
— Não; e você?
— Também não.
Contemplavam-se aterrados. Depois Loisel começou a se vestir novamente e saiu.
Só voltou às sete horas da manhã. Nada havia encontrado.
***
Ao fim de uma semana, tinham perdido toda a esperança e Loisel, que parecia cinco anos mais velho declarou:
— Não há remédio. Temos que comprar outro colar.
Foram à joalheria cujo nome estava gravado no cofrinho de pelúcia. O negociante consultou seus li­vros e disse:
— Nós só vendemos a caixa. O colar foi comprado em outro lugar… talvez em segunda mão.
Então andaram de joalheria em joalheria em bus­ca de um colar semelhante. Na rua Palais Royal acharam um que se não igual era muito parecido. Mas custava 36 mil francos. Loisel empalideceu ainda mais, porém declarou corajosa­mente.
— Ponha-o de parte. Fico com ele. Virei buscá-lo… depois de amanhã.
Nesses dois dias acumulou loucuras sobre lou­curas. Vendeu por 18 mil francos a casinha que her­dara de seus pais em Orleans. O resto obteve-o em vários emprésti­mos ruinosos, es­palhados em agio­tas de todo o gênero. O pobre ra­paz tremia, arris­cando sua assinatura em compromissos que não sabia se poderia honrar, apavo­rado pelo futuro de angústias, provações e misérias a que se estava condenando.
Quando Matilde foi afinal levar o colar a madame Forestier, esta atirou o cofrinho sobre a mesa de toalete sem sequer abri-lo.
***
Depois desse episódio teve início para o casal a vida horrível de necessidades. Matilde aceitou estoicamente a si­tuação. Era preciso pagar aquela dívida monstruosa. Despedira sua criada; foram morar em um cortiço nos subúrbios. Ela encarregou-se de todo o serviço da casa, desde os grosseiros trabalhos de limpeza até os odiosos misteres da cozinha. O mais penoso, porém, era ir à feira fazer compras, obrigada a só trazer o estritamente indispensável para não passar fome e ainda assim, escolhendo o que havia de mais barato, regateando, pechinchando vintém a vintém o seu miserável dinheiro.
A cada mês seu marido tinha que pagar juros elevados, renovar notas promissórias, suportar o mau humor dos agiotas… E agora ele nem a noite tinha livre, trabalhando em escriturações particulares até altas horas. Essa vida durou dez anos. Só então acabaram de pagar tudo, com juros de usura acumulados ao longo dos anos.
Matilde tinha agora trinta e cinco anos mas pa­recia uma velha. Tornara-se uma mulher forte, seca e rude… o tipo clássico da mãe de família pobre. Um domingo, passando pelos jardins dos Campos Elíseos, Matilde viu uma senhora cujo aspecto a fez estremecer. Era Madame Forestier. Mudara tão pouco que parecia a mesma de há dez anos. Mas quan­do a amiga se deteve diante dela não a reconheceu.
Foi preciso que Matilde lhe dis­sesse:
— “Boa tarde” Jeanne! — para que ela visivelmente estupefata, mur­murasse:
— Mas… co­mo é possível?… A senhora… você é Matilde.
— Mudei tanto assim? — perguntou a outra um tanto dolorosa…
— Sim… que­ro dizer… Esti­veste muito do­ente?…
— Não… mas passei por muitos dissabores….
— Minha pobre Matilde….
— E o mais cu­rioso é que passei­-os por tua causa.
— Não e possí­vel. Que te fiz eu?
— Nada. Mas… Lembras-te daquele colar de bri­lhantes que me emprestaste para ir a um baile?
— Sim… mas que tem isso?
— Eu perdi-o.
— Como… Pois se me fostes levá-lo dias depois.
— Era outro… tão parecido que não deste pela substituição. Mas era outro, que comprei para te entregar. E como meu marido nada tinha, levamos dez anos, dez horrendos anos de trabalhos e privações para pagá-lo.
— Santo Deus! — exclamou Madame Forestier com o olhar dilatado pela surpresa e o horror. — Não me digas isto! Compraste outro colar?… Por quanto?
— Por trinta e seis mil francos.
— Mas, minha querida… minha pobre querida. O meu era falso. Poderia valer, no máximo, uns quinhentos francos.

Tradução publicada originalmente na revista “Eu Sei Tudo”, em sua edição de outubro de 1927. Pesquisa, transcrição adaptação ortográfica: Iba Mendes (2016).