“O Aviador” – Florbela Espanca

Florbela Espanca

O Aviador

No veludo glauco do rio lateja fremente a carícia ardente do Sol; as suas mãos doiradas, como afiadas garras de ouro, amarfanham as ondas pequeninas, estorcendo-as voluptuosamente, fazendo-as arfar, suspirar, gemer como um infinito seio nu. Ao alto, os lenços claros, desdobrados, das gaivotas, dizendo adeus aos que andam perdidos sobre as águas do mar… Algumas velas no rio, manchazinhas de frescura no crepitar da fornalha. Mais nada.
Um óleo pintado a chamas por um pintor de gênio. As tintas flamejam ainda úmidas: são borrões vermelhos as colinas em volta; doirado, o indistinto turbilhão da casaria ao longe.
A vida estremece apenas, pairando quase imóvel, numa agitação toda interior, condensada em si própria, extática e profunda. A vida, parada e recolhida, cria heróis nos imponderáveis fluidos da tarde.
Os homens, saindo de si, borboletas como salamandras que a chama não queimara, abrem os braços como asas… e pairam! Acima do óleo pintado a chamas por um pintor de gênio ascende… o quê? Outra gaivota?… Outra vela?… O Sol debruça-se lá do alto e fica como uma criança que se esquecesse de brincar no trágico assombro do nunca visto! Outra gaivota?… Outra vela?…
Tudo em volta flameja. O pincel de gênio dá os últimos retoques ao cenário de epopeia. As tintas têm brilhos de esmaltes. São mais vermelhas as colinas agora, mais doirada a cidade distante.
Os filhos dos homens, cá embaixo, deixam cair nos campos a enxada que faz nascer o pão e florir as rosas; os pescadores largam os remos audaciosos que rasgam os mares e os rios, e os filhos dos homens mais duramente castigados, os que habitam o formigueiro das cidades, param nas suas insensatas correrias de formigas, e todos voltam a face para o céu.
O que anda sobre o rio? Outra gaivota?… Outra vela?…
Lá em cima, a formidável apoteose desdobra-se no meio do pasmo das coisas. É um homem que tem asas! E as asas pairam, descem, redopiam, ascendem de novo, giram, latejam, batem ao sol, mais ágeis e mais robustas, mais leves e mais possantes que as das águias. É um homem! A face enérgica, vincada a cinzel, emerge, extraordinária de vida intensa, na indecisão dos contornos que lhe fazem, vagos e pálidos, um vago pano de fundo; a face e as mãos. É um Rembrandt pintado por um titã.
Os músculos da face adivinham-se na força brutal das maxilas cerradas. Nos olhos leva visões que os filhos dos homens não conhecem. Os olhos dele não se veem; olham para dentro e para fora; são de pedra como os das estátuas e veem mais e mais para além do que as míseras pupilas humanas. São astros.
É um homem! Deixou lá embaixo todo o fardo pesado e vil com que o carregaram ao nascer; deixou lá embaixo todas as algemas, todos os férreos grilhões que o prendiam, toda a suprema maldição de ter nascido homem; deixou lá embaixo a sua sacola de pedinte, o seu bordão de Judeu Errante, e, livre, indômito, sereno, na sua mísera couraça de pano azul, estendeu em cruz os braços que transformou em asas!
Não há uma sombra de nervosismo, uma crispação, naquele perfil de medalha florentina, naquela face moldada em bronze, um bronze pálido que lateja e vibra; não há uma ruga naquele olímpico modelo de estatuária antiga, recortado no ouro em fusão da tarde incendiada. O seu coração, ao alto, é mais uma onda do rio, embaladora, rítmica, na sensualidade da tarde; é uma voz que sussurra, que ele sente sussurrar em uníssono com outra voz que sussurra mais áspera, mais rude —, a voz do coração de aço que, sob o esforço das suas mãos, palpita e responde.
O Sol ascende mais ao alto, vai mais para além, tem agora um fulgor maior, e, sobre o bronze vibrante das mãos — triunfantes, vai pôr a mordedura da sua boca vermelha. São brutais aquelas mãos, formidáveis de esforço, assombrosas de vontade! Esqueceram as carícias e os beijos, o frêmito dos contatos inconfessáveis, o trêmulo tatear das carnes moças e cobiçadas; deixaram lá embaixo os gestos de doçura e piedade, o aroma das cabeleiras desatadas, a forma dos rostos desejados moldados nas suas palmas nervosas, todas as posses onde se crisparam e os desejos para que se estenderam; perderam as curvas harmoniosas, a tepidez dolente e macia de preciosos instrumentos de amor! Contraíram-se em garras e, no alto, crispadas sobre a presa, são elas que algemam, são elas que escravizam, que subjugam as asas cativas!
E, lá no alto, o homem está contente. Como quem atira ao vento, num gesto de desdém, um punhado de pétalas, atira cá para baixo uns miseráveis restos de ouro que levou; do seu ouro de lembranças de que se tinha esquecido. O homem está contente.
E a apoteose continua. O pintor de gênio endoideceu; atira sem cambiantes, sem sombras, sem esbatidos, traços como setas que se cravam; arroja brutalmente todos os vermelhos e os ouros da sua paleta, e pinta como quem esmaga em gestos tumultuosos de demente. Donde vem tanto ouro? Prodígio! Miragem! Deslumbramento! Até as velas sangram e as asas, peneiradas de cinza, das gaivotas se encastoam de rutilantes pedrarias raras. É irisado agora o veludo glauco do rio; o sol atira-lhe a rir, como um menino, pródigo e inconsciente, as suas últimas gemas. As colinas, em volta, são mãos abertas de assassino, e o casario, chapeado de luz, é um manto de púrpura rasgado, cujos farrapos vão prender-se ainda nas labaredas do horizonte a arder. O homem está contente. Atira as asas mais ao alto, escalando os cimos infinitos, já fora do mundo, na sensação maravilhosa e embriagadora de um ser que se ultrapassa! Sente-se um deus! As mãos desenclavinham-se, desprendem-se-lhe da terra onde as tem presas um derradeiro fio de ouro… e cai na eternidade.
Tanto azul!… As filhas dos deuses, ondinas, sereias, nereidas, princesas encantadas, acodem todas pressurosas. Há um remoinho de cabeleiras de ouro; os braços são remos de marfim abrindo as águas; trazem nos seios nus a curva doce das ondas, no riso os misteriosos corais das profundidades; arrastam mantos verdes tecidos de algas, como rendas, onde se prendem estrelas; todo o luar prateado que à noite faz fulgir o rio, trazem-no em diadema nos cabelos.
Falam todas a um tempo: Que foi?… Que aconteceu?… e a fala é um arrepio de ondas…
Em volta das asas mortas, são como flores desfolhadas em redor de um esquife negro. E olham…
— É mais um filho dos homens? — pergunta uma, estendendo o braço como uma grinalda de açucenas.
Mas a de cabeleira mais fulva, onde o ouro foi mais pródigo e se aninhou mais vezes, responde num sussurro:
— Não. Não vês que tem asas?
— É então um filho dos deuses? — pergunta outra.
— Não. Não vês que sorri?
E cercam-no, contemplam-no, vão mais perto, quase lhe tocam…
Há um remoinho mais febril nas cabeleiras de ouro; gemem mais fundo, mais melodiosas, as vozes miudinhas, e os mantos, como serpentes, em curvas donairosas, enlaçam-se uns nos outros.
— Tem os cabelos negros como aquele que tombou no mar do Norte…
A de cabeleira mais fulva, onde o ouro foi mais pródigo e se aninhou mais vezes, acerca-se ainda mais… estende o braço a medo… ousa tocar-lhe num gesto mais leve, mais brando que um suspiro… abre-lhe as pálpebras descidas, no ar recolhido de quem abre duas violetas…
Em volta fremem mais fundo as ondas dos seios; as mãos abrem os dedos como faúlhas de estrelas; uma lânguida sereia, divinamente branca, eleva o veludo branco dos braços como duas ânforas cheias.
— Que tem dentro? — pergunta Melusina.
— Estrelas? — diz uma filha de rei.
— Não; duas gotas de água verdes, límpidas, translúcidas, serenas. Venham ver…
Num turbilhão, entrelaçando as rendas sutis dos mantos roçagantes, confundindo os raios de sol nascente das cabeleiras fulvas, debruçam-se todas, e, no fundo, no seio translúcido das duas gotas de água, veem redopiar as palhetas de ouro das cabeleiras de ouro, veem fulgir os raios luarentos dos diademas, e todas as gotas de água dos seus olhos vogam no fundo, como estrelinhas, tão límpidas, claras, serenas elas são.
Olham-se extáticas todas as deusas das águas; faz-se mais brando o ciciar das vozes; os gestos são finos como hálitos; os mantos verdes empalidecem, são cor das pupilas agora.
Uma segreda:
— Vamos deitá-lo lá no fundo, naquele leito de opalas irisadas que o mar do Oriente nos mandou…
Diz outra:
— Vamos pô-lo naquela urna de cristal que é como um túmulo aberto donde se avista o céu…
— Vamos envolvê-lo na mortalha daquele farrapo de luar de agosto que as ondas nos trouxeram da planície… — murmura outra.
E há vozes, escorrendo como um óleo divino, que ciciam:
— Vamos espalhar sobre ele, como pétalas de ouro, os nossos cabelos loiros…
— Vamos selar-lhe a boca com o coral cor-de-rosa das nossas bocas em flor…
— Dêmos-lhe, para ele descansar a cabeça, as brandas vagas dos nossos seios nus…
— Para o deitar, eu sei de um sítio onde desabrocham, entre espumas de neve, rosas mais pálidas que as que eu tinha no meu palácio distante — diz uma filha de rei.
— Eu sei de um túmulo de areia onde a areia é de prata…
— Eu descobri a gruta toda em pérolas cor-de-rosa, onde fica a madrugada… As ondas ali não cantam, poderá dormir descansado…
— Levemo-lo para aquele berço em forma de caravela que destas praias partiu e se perdeu no mar das Tormentas…
O frêmito das vozes fazia-se maré alta… as pálpebras violetas palpitavam…
Foi então que uma delas, que tinha no olhar um pouco da nostálgica tristeza humana, que mostrava ainda sinais de algemas nos pulsos de seda branca, que trazia nos cabelos uma vaga cinza de crepúsculo, murmurou, enquanto num gesto, onde havia ainda esfumadas reminiscências de gestos maternais, lhe aconchegava ao peito a mísera couraça de pano azul:
— Deixem-no… Talvez lhe doam as asas quebradas…
Silêncio…
E aquele que tinha sido um filho dos homens ficou a dormir na eternidade como se fora um filho dos deuses.

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)