“Nossa amiga” – Carlos Drummond de Andrade

carlos drummond de andrade

Nossa amiga

Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha.
O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
– Foi a garota que pediu para chamar…
Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua requisição.
Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam de dentro:
– Quem está aí? É de paz ou de guerra?
De fora respondem:
– É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das meninas de três anos.
À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para os dicionários do futuro.
– Qual é a sua casa?
– Esta.
– E a outra de onde você veio?
– Também.
– Quantas casas você tem?
– Esta e aquela.
– De qual você gosta mais?
– Que é que você vai me dar?
– Nada.
– Gosto da outra.
– Tem aqui esta pessegada, esta bananinha…
– Gosto desta casa! Gosto de você!
Não é gulodice nem interesse mesquinho… Será antes prazer de sentir-se cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os cabelos.
Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino.
Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente. Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam. Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.
– Não mexa nos bichinhos.
Mexia.
– Não mexa, já disse…
Em vão.
– Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
– Que Catarina?
– Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?) existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua – a rua é o espaço entre as duas quadras, repleto de surpresas – geralmente à tarde. Vem bêbado, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.
– Vou embora para minha casa. Você vai me levar.
– Mas você mora tão pertinho…
– E Pepino?
– Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.
– Pega, sim. Eu sei.
– Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver se ele pega.
– Eu não vou na festa.
– Você é quem perde. Vem Elzinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena, Lourdes, Bárbara, Édison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.
– Até logo!
Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto desgrenhado.
– Espere aí, você não tem medo do Pepino?
– Não. Estou zangada com você.
Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:
– Espia quem me trouxe.
Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.
– Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.
– Mas que beleza! Onde você vai?
– Vou na festa.
Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia – um carretel, a galinha que salta do carrinho de feira – fazem esquecer a festa, se não a constituem. E resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de formas – será a verdade?
Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.
– Comadre, seu filhinho como vai?
– Tá bom, comadre, e o seu?
– Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
– Então vou dar no meu também.
Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade. A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.

Texto extraído do livro “Contos de Aprendiz”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963, pág. 153. Este conto foi selecionado por Ítalo Moriconi e consta do livro “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”.