“Nacionalidade” – Alcântara Machado
Nacionalidade
O barbeiro Tranquillo Zampinetti da Rua do Gasômetro n.0 224-B entre um cabelo e uma barba lia sempre os comunicados de Guerra do Fanfulla. Muitas vezes em voz alta até. De puro entusiasmo. La fulminante investita dei nostri bravi bersaglieri ha ridotto le posizione nemiche in un vero amazzo di rovine. Nel campo di battaglia sono restati circa cento e novanta nemici. Dalla nostra parte abbiamo perduto due cavalli ed è rimasto ferito un bravo soldato, vero eroe che si à avventurato troppo nella conquista fatta da solo di una batteria nemica.
Comunicava ao Giacomo engraxate (SALÃO MUNDIAL) a nova vitória e entoava:
sarà italiana a rombo di cannone!
Nesses dias memoráveis diante dos fregueses assustados brandia a navalha como uma espada:
– Caramba, come dicono gli spagnuoli!
Mas tinha um desgosto. Desgosto patriótico e doméstico. Tanto o Lorenzo como o Bruno (Russinho para a saparia do Brás) não queriam saber de falar italiano. Nem brincando. O Lorenzo era até irritante.
– Lorenzo! Tua madre ti chiama!
Nada.
– Tua madre ti chiama, ti dico!
Inútil.
– Per l’ultima volta) Lorenzo! Tua madre ti chiama, hai capito?
Que o quê.
– Stai attento que ti rompo la faccia, figlio d’un cane sozzaglione, che non sei altro!
– Pode ofender que eu não entendo! Mamãe! MAMÃE! MAMÂE!
Cada surra que só vendo.
Depois do jantar Tranquillo punha duas cadeiras na calçada e chamava a mulher. Ficavam gozando a fresca uma porção de tempo. Tranquillo cachimbando. Dona Emília fazendo meias roxas, verdes, amarelas. Às vezes o Giacomo vinha também carregando a sua cadeira de palha grossa.
Raramente abriam a boca. Quase que para cumprimentar só:
– Buona sera, Crispino.
– Tanti saluti a casa, sora Clementina.
Mas quando dava na telha do Carlino Pantaleoni, proprietário da QUITANDA BELLA TOSCANA, de vir também se reunir ao grupo era uma vez o silêncio. Falava tanto que nem parava na cadeira. Andava de um lado para outro. Com grandes gestos. E era um desgraçado: citava Dante Alighieri e Leonardo da Vinci. Só esses. Mas também sem titubear. E vinte vezes cada dez minutos. Desgraçado.
O assunto já sabe: Itália. Itália e mais Itália. Porque a Itália isto, porque a Itália aquilo. E a Itália quer, a Itália faz, a Itália é, a Itália manda.
Giacomo era menos jacobino. Tranquillo era muito. Ficava quieto porém.
É. Ficava quieto. Mas ia dormir com aquela idéia na cabeça: voltar para a pátria.
Dona Emília sacudia os ombros.
Um dia o Ferrucio candidato do governo a terceiro juiz de paz do distrito veio cabalar o voto do Tranquillo. Falou. Falou. Falou. Tranquillo escanhoando o rosto do político só escutava.
– Siamo intesi?
– No. Non sono elettore.
– Non è elettore? Ma perchè?
– Perchè sono italiano, mio caro signore.
– Ma che c’entra la nazionalità, Dio Santo? Pure io sono italiano e farò il giudice!
– Stà bene, stà bene. Penserò.
E votou com outra caderneta.
Depois gostou. Alistou-se eleitor. E deu até para cabalar.
A guerra européia encontrou Tranquillo Zampinetti proprietário de quatro prédios na Rua do Gasômetro, dois na Rua Piratininga, cabo influente do Partido Republicano Paulista e dileto compadre do primeiro subdelegado do Brás; o Lorenzo interessado da firma Vanzinello & Cia. e noivo da filha mais velha do Major Antônio Del Piccolo, membro do diretório governista do Bom Retiro; o Bruno vice-presidente da Associação Atlética Pingue-Pongue e primeiranista do Ginásio do Estado.
Tranquillo agitou-se todo. Comprou um mapa das operações com as respectivas bandeirinhas. Colocou no salão o retrato da família real. Enfeitou o lustre com papel de seda tricolor.
– Questa volta Guglielmone avrà il suo!
Lorenzo noivava. Bruno caçoava.
Dona Clementina pouco ligava. Mas no dia em que o marido resolveu influenciado pelo Carlino subscrever para o empréstimo de guerra protestou indignada. Tranquillo deu dois gritos patrióticos. Dona Emília deu três econômicos. Tranquillo cedeu. E mostrou ao Carlino como explicação a sua caderneta de eleitor.
Aos poucos mesmo foi-se desinteressando da guerra. E chegou à perfeição de ficar quieto na tarde em que o Bruno entrou pela casa adentro berrando como um possesso:
scrisse alla Regina:
Si vuol vedere Trieste
t’la mando in cartolina…
E o Bruno só para moer não cantou outra cousa durante três dias.
Proprietário de mais dois prédios à Rua Santa Cruz da Figueira Tranquillo Zampinetti fechou o salão (a mão já lhe tremia um pouquinho) e entrou para sócio comanditário da Perfumaria Santos Dumont.
Então já dizia em conversa no Centro Político do Brás:
– Do que a gente bisogna no Brasil, bisogna mesmo, é d’un buono governo, mais nada!
E o único trabalho que tinha era fiscalizar todos os dias a construção da capela da família no cemitério do Araçá.
Quando o Bruno bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de São Paulo ao sair do salão nobre no dia da formatura caiu nos seus braços Tranquillo Zampinetti chorou como uma criança.
No pátio a banda da Força Pública (gentilmente cedida pelo doutor Secretário da Justiça) terminava o hino acadêmico. A estudantada gritava para os visitantes:
– Chapéu! Chapéu-péu-péu!
E maxixava sob as arcadas.
Tranquillo empurrou o filho com fraque e tudo para dentro do automóvel no Largo de São Francisco e mandou tocar a toda para casa.
Dona Emília estava mexendo na cozinha quando o filho do Lorenzo gritou no corredor:
– Vovó! Vovó! Venha ver o tio Bruno de cartola!
Tremeu inteirinha. E veio ao encontro do filho amparada pelo Lorenzo e pela nora.
– Benedetto pupo mio!
Vendo os cinco chorando abraçados o filho do Lorenzo abriu também a boca.
O primeiro serviço profissional do Bruno foi requerer ao Ex.mo Sr. Dr. Ministro da Justiça e Negócios Interiores do Brasil a naturalização de Tranquillo Zampinetti, cidadão italiano residente em São Paulo.