“Mulheres Detentas” – João do Rio
Mulheres Detentas
Quando entramos, algumas detentas lavavam a primeira sala, sob o olhar severo de um guarda.
– Tudo limpo?
– Saiba V. Sa que ainda não.
– Pois apresse, apresse estas mulheres.
O chão de pedra estava cheio de lama. A água suja escorria da soleira da sala em dois grossos fios e as mulheres, de saia arregaçada, com pulos estranhos, davam gritinhos estridentes. Um cheiro especial, esquisito, pairava naquela galeria batida de sol, em que os metais reluziam. Os guardas tinham a fisionomia fechada.
– Quantas presas?
Há atualmente cinqüenta e oito, divididas por três salas, uma das quais é enfermaria. À falta de lugares, a promiscuidade é ignóbil nesses compartimentos transformados em cubículos. A maioria das detentas, mulatas ou negras, fúfias da última classe, são reincidentes, alcoólicas e desordeiras. Olho as duas salas com as portas de par em par abertas e fico aterrado. Há caras vivas de mulatinhas com olhos libidinosos dos macacos, há olhos amortecidos de bode em faces balofas de aguardente, há perfis esqueléticos de antigas belezas de calçada, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas, rostos brancos de medo, beiços trêmulos, e no meio dessa caricatura do abismo as cabeças oleosas das negras, os narizes chatos, as carapinhas imundas das negras alcoólicas. Alguns desses entes, lembra-me tê-los visto noutra prisão, no pátio dos delírios, no hospício. É possível? Haverá loucas na detenção como há agitados e imbecis? O Dr. Afrânio Peixoto, o psiquiatra eminente, dissera-me uma vez, apontando o pátio do hospício, onde, presas de agitação, as negras corriam clamando horrores aos céus: – Há algumas que têm quatro e cinco entradas aqui. Saem, tornam a beber e voltam fatalmente.
As mulheres tinham corrido todas para os fundos das salas, casquinando risinhos de medo. Naquela tropa, as alcóolicas andavam trôpegas, erguendo as saias com um ar palerma. Indiquei ao guarda uma delas.
– Venha cá, gritou ele.
As mulheres agitaram-se. Eu? Sou eu? Seu guarda, posso ir? O guarda tornou a chamar a massa abjeta e foi quase empurrada pelas outras que ela veio, meio envergonhada.
– Quantas vezes esteve no hospício?
A negra olhou para nós. Os seus olhos amarelos, raiados de sangue, abriram-se num esforço e ela balbuciou.
– Duas, sim senhor.
O álcool ou a preparava para a tísica rápida ou, dias depois, atiraria írremissívelmente para o manicômio.
As outras criaturas, dotadas de curiosidade irresistível, tinham-se aproximado das portas entre risadinhas e cochichos depravados, e eu pude assim, com calma e tranqüilidade, apreciar e interrogar todas as flores de enxurrada, todas essas venenosas parasitas do amor torpe num campo perdido do jardim do crime. Essas mulheres estão na detenção por coisas fúteis, coisas que cometem diariamente até à cólera final dos inspetores tolerantes ou a vingança de algum soldadinho apaixonado.
São moradoras do morro da Favela, das ruelas próximas ao quartel general, dos becos que deságuam no Largo da Lapa, das Ruas da Conceição, S. Jorge e Núncio. Quase sempre brigavam por causa de uma “tentação” que tentava e pretendia satisfazer as duas. Outras atiraram-se à cara dos apaixonados num desespero de bebedeira.
– Saiba V. Sa que da outra vez que estive aqui foi por causa do inspetor. Eu tinha o meu bajoujo; o bobo cheio de “fobó” estava-se endireitando. Mas veio de carrinho. O diabo vingou-se!
E logo outra, apoplética:
– Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rodelista. Quando a gente gosta de um homem, gosta mesmo, nem que bata o trinta e um.
Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter sido bonita:
– Como se chama?
– Quantos anos tem?
– Francisca Maria.
– Tenho vinte.
E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário e voltar à detenção. Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre, tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas, nas horas de solidão, têm na própria pele a recordação da eterna dor.
Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato, destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes, uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:
– E qual destes é querido agora?
Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso, com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.
Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou-me à enfermaria, onde havia apenas três doentes –a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias dos criminalistas passados e principalmente das idéias de Maudsley sobre o crime e a loucura.
– Como te chamas?
– Olívia.
– Você não gosta das crianças?
Um gesto negativo de cabeça.
– Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?
É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a chorar. Tudo quanto se lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, com os cabelos esparsos nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia como um cadáver de asteca ao ressurgir à face da terra.
Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da colônia de Dois Rios à disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre os guardas.
Não tivemos tempo de chegar à janela. Pelo corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda a roupa de zuarte e um lenço cobrindo o crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo a cada instante, com as mãos em cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, com os braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas tocando.
– Eia! pra diante! eia!
As duas primeiras passaram sem ver, com o olhar insensível. A última parou.
– Não posso mais. Vim para fazer operação. Oh! o meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda, eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.
– Mas esta mulher é inteligente!
– Pois se até ensina a ler.
Aproximei-me:
– Ah! meu caro senhor, por piedade, peça ao ministro o meu perdão. Há três anos que sofro. O ódio de um inspetor, a falta de amigos e de proteção reduziram-me a este lamentável estado. Venho da colônia. Não me trataram como uma presa, trataram-me como uma pessoa digna de piedade. E apesar disso eu estou assim. Perdão para mim!
– E a senhora chama-se?
– Maria José Correia. Fui professora pública. .
Deus misericordioso! Que fatalidade sinistra arremessara aquele pobre ente inteligente, descendente de uma família honesta, à tropilha de uma colônia correcional? Que destino inclemente impele na sombra o homem, forma os vagalhões da popularidade, afoga uns, atira outros às estrelas e emaranha no dissabor e na tristeza a marcha do maior número? A essa mulher bastara perder o apoio da sociedade, para acabar no horizonte fechado de correcional todos os sonhos de ambição, todas as idéias felizes que os pais depositaram no seu espírito. Que lhe servia a visão superior do mundo na cloaca do crime e da luxúria? Que lhe servia ter ensinado às crianças o amor das coisas dignas, se o seu fim era acabar no eito da colônia, cavando a terra entre as desordeiras e as perdidas varridas da cidade?
Tomou-se uma espécie de medo, de fobia neurastênica. Recuei.
O guarda dizia:
– Deixa de lambança, Maria. Todos te conhecem. Saiba V. Sa que é popular nos quiosques da Estrada de Ferro Central. Vai às cinco da manhã, e só deixa de beber quando os quiosques fecham. Antigamente servia-se da barriga para dizer que estava grávida e ser bem tratada na delegacia. Agora não há mais disso. É uma alcoólica mais malcriada que qualquer outra.
A mulher calou-se. As outras tinham parado e de repente a tísica, a que tinha na face a expressão horrenda de uma agonia sem fim, caiu de joelhos soluçando.
– Se eu tivesse o meu perdão. Nossa Senhora! não morreria aqui! Se eu tivesse o meu perdão, eu ia morrer sossegada.
Fora o sol enchia todo o pátio de um esplendor de puro líquido.