“Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera” – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
Marcha fúnebre para o rei Luís Segundo da Baviera
Hoje, mais demorada do que nunca, veio a Morte vender ao meu limiar. Diante de mim, mais demorada do que nunca, desdobrou os tapetes, as sedas, e os damascos, do seu esquecimento e da sua consolação. Sorria deles, por elogio, e não se importando que eu a visse. Mas quando eu me tentava por comprar, falou-me que não os vendia. Não viera para que eu quisesse o que me mostrava mas para que, por o que mostrava, a quisesse a ela. E, dos seus tapetes, disse-me que eram os que se gozavam no seu palácio longínquo; das suas sedas, que outras se não trajavam no seu castelo na sombra; dos seus damascos, que melhores ainda eram os que cobriam, toalhas, os retábulos da sua estância para além do mundo.
O apego natal, que me prendia ao meu limiar desvestido, com gesto suave o desligou. “O teu lar”, disse, “não tem lume: para que queres tu ter um lar?” “A tua casa “, disse, “não tem pão: para que te serve a tua mesa?” “A tua vida”, disse, “não tem quem a acompanha: para que te seduz a tua vida?”
“Eu sou”, disse ela, “o lume das lareiras apagadas, o pão das mesas desertas, a companheira solícita dos solitários e dos incompreendidos. A glória, que falta no mundo, é pompa no meu negro domínio. No meu império o amor não cansa, porque sofra por ter; nem dói, porque canse de nunca ter tido. A minha mão pousa de leve nos cabelos dos que pensam, e eles esquecem; contra o meu seio se encostam os que em vão esperaram, e eles enfim confiam.”
“O amor, que me têm”, ela disse, “não tem paixão que consuma; ciúme que desvaire; esquecimento que deslustre. Amar-me é como uma noite de verão, quando os mendigos dormem ao relento, e parecem pedras à beira dos caminhos. Dos meus lábios mudos não vem canto como o das sereias, nem melodia como a das árvores e das fontes; mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa, o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa.”
“Que tens tu”, ela disse, “que te ligue à vida? O amor não te busca, a glória não te procura, o poder não te encontra. A casa, que herdaste, a herdaste em ruínas. As terras, que recebeste, tinha a geada queimado as suas primícias, e o sol ardido as suas promessas. Nunca viste, senão seco, o poço da tua quinta. Apodreceram, de antes de as veres, as folhas nos teus tanques. As ervas ruins cobriram as áleas e as alamedas, por onde os teus pés nunca passaram.”
“Mas no meu domínio, onde só a noite reina, terás a consolação, porque não terás a esperança; terás o esquecimento, porque não terás o desejo terás o repouso, porque não terás a vida.”
E mostrou-me como era estéril a esperança de melhores dias, quando se não nascera com alma, em que os dias bons se obtivessem. Mostrou-me como o sonho não consola, porque a vida dói mais quando se acorda. Mostrou-me como o sono não repousa, porque o habitam fantasmas, sombras das coisas, rastos dos gestos, embriões mortos dos desejos, despojos do naufrágio de viver.
E, assim dizendo, dobrava devagar, mais demorada do que nunca, os seus tapetes, onde os meus olhos se tentavam, as suas sedas, que a minha alma cobiçava, os damascos dos seus retábulos, onde já as minhas lágrimas caíam.
“Por que hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem?
Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz, porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? Se descansas perfeitamente, se acaso dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, onde o sono nunca tem sonhos? Se um momento te elevas, porque vês a Beleza, e te esqueces de ti e da Vida, como não te elevarás no meu palácio, cuja beleza noturna não sofre discordância, nem idade, nem corrupção; nas minhas salas onde nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarelece a brancura dos ornatos brancos.
Vem ao meu carinho, que não sofre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que não se esgota, o néctar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem inebria. Contempla, da janela do meu castelo, não o luar e o mar, que são coisas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, o esplendor indiviso do abismo profundo!
Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a eles. Contra o meu seio não sentirás mais o próprio amor que fez com que o buscasses! Senta-te ao meu lado, no meu trono, e és para sempre o Imperador indestronável do Mistério e do Graal, coexistes com os deuses e com os destinos, em não seres nada, em não teres aquém e além, em não precisares nem do que te sobre, nem sequer mesmo do que te falte, nem sequer mesmo do que te baste.
Serei tua esposa materna, tua irmã gêmea encontrada. E casadas comigo todas as tuas angústias, reservado a mim tudo o que em ti procuravas e não tinhas, tu próprio te perderás em minha substância mística, na minha existência negada, no meu seio onde as coisas se apagam, no meu seio onde as almas se abismam, no meu seio onde os deuses se desvanecem.”
Senhor Rei do Desapego e da Renúncia, Imperador da Morte e do Naufrágio, sonho vivo errando, faustoso, entre as ruínas e as estradas do mundo!
Senhor Rei da Desesperança entre pompas, dono doloroso dos palácios que o não satisfazem, mestre dos cortejos e dos aparatos que não conseguem apagar a vida!…
Senhor Rei erguido dos túmulos, que viestes na noite e ao luar, contar a tua vida às vidas, pajem dos lírios desfolhados, arauto imperial da frieza dos marfins!
Senhor Rei Pastor das Vigílias, cavaleiro andante das Angústias, sem glória e sem dama ao luar das estradas, senhor nas florestas, nas escarpas, perfil mudo, de viseira caída passando nos vales, incompreendido pelas aldeias, chasqueado pelas vilas, desprezado pelas cidades!
Senhor Rei que a Morte sagrou Seu, pálido e absurdo, esquecido e desconhecido, reinando entre pedras foscas e veludos velhos, no seu trono ao fim do Possível, com a sua corte irreal cercando-o, sombras, e a sua milícia fantástica, guardando-o, misteriosa e vazia.
Trazei, pajens; trazei, virgens; trazei servos e servas, as taças, as salvas e as grinaldas para o festim a que a Morte assiste ! Trazei-as e vinde de negro, com a cabeça coroada de mirtos.
Mandrágora seja o que tragais nas taças, […] nas salvas, e as grinaldas sejam de violetas […], das flores todas que lembrem a tristeza.
Vai o Rei a jantar com a Morte, no seu palácio antigo, à beira do lago, entre as montanhas, longe da vida, alheio ao mundo.
Sejam de instrumentos estranhos, cujo mero som faça chorar, as orquestras que se preparam para a festa. Os servos vistam librés sóbrias, de cores desconhecidas, faustosos e simples como os catafalcos dos heróis.
E antes que o festim comece, passe pelas alamedas dos grandes parques o grande cortejo medieval de púrpuras mortas, o grande cerimonial silencioso em marcha, como a beleza num pesadelo.
A Morte é o triunfo da Vida!
Pela morte vivemos, porque só somos hoje porque morremos para ontem. Pela morte esperamos, porque só podemos crer em amanhã pela confiança na morte de hoje. Pela Morte vivemos quando sonhamos, porque sonhar é negar a vida. Pela morte morremos quando vivemos, porque viver é negar a eternidade! A Morte nos guia, a morte nos busca, a morte nos acompanha. Tudo o que temos é morte, tudo o que queremos é morte, é morte tudo o que desejamos querer.
Uma brisa de atenção percorre as alas.
Ei-lo que vai chegar, com a morte que ninguém vê e a que não chega nunca.
Arautos, tocai! Atendei!
Teu amor pelas coisas sonhadas era o teu desprezo pelas coisas vividas.
Rei-Virgem que desprezaste o amor, Rei-Sombra que desdenhaste a luz, Rei-Sonho que não quiseste a vida!
Entre o estrépito surdo de címbalos e atabales, a Sombra te aclama Imperador!
Texto publicado em Livro do Desassossego.