“Mamã” – Florbela Espanca
Mamã
Noite negra e tempestuosa! No céu não luzia uma estrela, o vento soprava com violência, e flocos de neve envolviam, como em alva mortalha, a aldeia adormecida. Só ao longe milhares de luzes ardiam no soberbo castelo. Perfumes, flores, sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da estrada, fome, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre camponesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam esmola pelos casais. Agora choravam. Tinham fome e não tinham pão, os míseros pequeninos.
No único aposento via-se apenas uma enxerga onde, com a cabeça entre as mãos, a pobre mãe pensava, talvez, no futuro bem negro dos filhinhos.
A contrastar, porém, singularmente com a miséria do casebre, via-se um berço elegante e lindo. Envolviam-no rendas e arminhos. Dentro um pequeno gentil dormia, com a linda cabecita emoldurada nos anéis doirados do seu cabelo loiro. Nos lábios pairava-lhe um sorriso meigo de anjo dormente.
Abre-se a porta de repente. Uma mulher divinalmente formosa, envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva a longa cauda, entra na choupana.
A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada, invejada, que tinha a seus pés um mundo de adoradores, não receando amarrotar as rendas caras do seu opulento vestido de baile, ajoelhou humilde ante o bercito do filho do crime, que tinha de beijar furtivamente; inclinou a cabeça, e duas lágrimas brilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos, resvalando-lhe pelas faces, que foram cair nas do pequenito que, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbuciou mimoso:
— Mamã!
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)