“Madame Hermet” – Guy de Maupassant
Madame Hermet
Vivem os loucos sumidos nessa impenetrável nebulosidade da demência, de onde tudo quanto viram na terra, tudo quanto amaram, tudo quanto fizeram, começa de novo para eles numa nova existência imaginária, alheia por completo a todas as leis que governam e regem o pensamento humano. Por isso eles me atraem com força irresistível.
Para os loucos não existe o impossível, desaparece o inverossímil e o mágico constitui elemento contínuo e natural. Nada fazem por vencer as resistências e os obstáculos que encontrarão em seu caminho, e basta um capricho de sua vontade para que possuam todas as riquezas do mundo e gozem dos mais puros e excêntricos prazeres.
São os únicos mortais que podem ser felizes na terra, porque para eles não existe a realidade.
Certo dia, ao visitar um manicômio, o médico que me acompanhava me disse:
— Vou mostrar-lhe um tipo extremamente interessante.
E mandou abrir uma cela onde uma mulher de uns quarenta anos, porém ainda bela, estava sentada contemplando o seu rosto que a superfície de um espelho de mão refletia.
Apenas nos viu, levantou-se pressurosamente e se dirigiu para o fundo da cela em busca de um véu que se achava sobre uma cadeira. Cobriu o rosto com cuidado e voltou ao lugar onde estávamos eu e meu amigo, e respondeu a nossos cumprimentos com uma inclinação de cabeça.
— Como passou a manhã? — perguntou-lhe o médico.
—Mal, muito mal. Os sinais aumentam dia a dia.
— Nada disso, senhora. Está completamente enganada.
— Não senhor, estou certa disso. Hoje contei mais dez mais buraquinhos: três na face direita, quatro na esquerda e três na testa. Isto é horrível! Não quero que ninguém me veja. Estou desfigurada para sempre!
A pobre mulher caiu sobre o catre e começou a soluçar. Ato contínuo o médico tomou uma cadeira sentou-se ao lado da paciente e, com voz suave e consoladora, lhe disse:
— Vamos ver; mostre-me isso, que eu acho que é nada. Vai ver como desaparece tudo com uma insignificante cauterização.
— Diante do senhor eu tiro o véu, mas não diante desse cavalheiro que não conheço.
— Também é médico e talvez possa curá-la melhor do que eu.
A louca mostrou então o rosto; mas, cheia de vergonha, baixou olhos para evitar outros olhares, e exclamou:
— Sofro de um modo atroz ao ver-me assim! É espantoso.
Confesso que a contemplei com assombro, porque não tinha nada na cara: nenhum sinal, nenhuma mancha, nenhuma cicatriz.
Poucos momentos depois a infeliz se voltou pera mim os olhos sempre fitos no chão, e me disse:
— Contraí esta horrível enfermidade cuidando de meu filho. Mas seja como for, cumpri o meu dever e tenho a consciência tranquila. Só Deus sabe quanto sofro!
O doutor tirou do bolso um pincel de aquarelista e exclamou:
— Repito que isso é nada, e que vai desaparecer dentro de um instante!
A louca apresentou a face direita e o médico começou a passar por ela o pincel. Em seguida praticou a mesma operação na face esquerda e na testa. Depois disse:
— Olhe ao espelho. Não há mais nada, absolutamente nada.
A demente contemplou-se durante largo tempo, com profunda atenção, com um violento esforço de todo o seu ser para descobrir alguma coisa, e murmurou:
— Já não se vê nada. Muito obrigada, doutor.
O médico se levantou, fez-me sair, e seguiu-me apressadamente. Apenas havia fechado a porta, me disse:
—Agora lhe contarei a horrível história dessa desgraçada.
Chama-se madame Hermet e foi muito formosa, muito vaidosa e feliz. É uma dessas mulheres que no mundo não conta com outra coisa senão com sua beleza e com o desejo de agradar, para consolo de sua existência.
Ocupava-se tão somente no embelezamento do rosto, das mãos e dos seus dentes, gastando diariamente muitas horas em seu toucador.
Ficou viúva com um filho o qual foi educado com muita dedicação. Era muito querido de sua mãe.
Um dia, quando madame Hermet tinha trinta e sete anos, o filho, que completado quinze, ficou gravemente doente. O rapaz teve de ficar de cama, sem que a princípio ninguém atinasse com a causa da enfermidade.
O preceptor do pequeno velava constantemente a seu lado, ao passo que sua mãe não se atrevia a entrar no quarto do filho, limitando-se a pedir da porta notícias do doente.
— Que disse o médico? — perguntou uma noite ao regressar do teatro.
— Que o menino está atacado de varíola — respondeu o preceptor.
Madame Hermet deu um grito e passou a correr precipitadamente.
Quando a criada entrou no dia seguinte em seu quarto, notou um acentuado cheiro de açúcar queimado, e encontrou sua senhora com os olhos abertos, o rosto pálido de insônia, tiritando de angústia sobre a cama.
— Como está o Jorge? — perguntou a mãe.
— Mal, senhora, muito mal.
Madame Hermet levantou-se muito tarde, não tomou mais que uma taça de chá e saiu à rua em busca de um farmacêutico que lhe indicasse alguns remédios que prevenisse contra o contágio da varíola.
Não voltou para casa senão à hora da refeição, carregada de frascos. Fechou-se no quarto, enchendo-se de desinfetantes.
O preceptor a esperava na varanda, e, logo que o viu, inquiriu com voz embargada pela emoção:
— Como está o Jorge?
— Pior, senhora, muito pior, de tal maneira que o médico está alarmadíssimo com o avanço da enfermidade.
Madame Hermet começou a chorar. Não comeu nada.
Na manhã seguinte tornou a perguntar pelo filho, e não se afastou todo o dia de seu quarto, onde fumegava um pequeno braseiro que esparzia pelo compartimento um perfume penetrante.
Madame Hermet passou assim uma semana inteira. Saía unicamente um pouco para tomar ar, sem atrever-se a entrar no quarto do filho.
No décimo primeiro dia, o preceptor se apresentou no quarto de dormir da mãe e, com voz tranquila, exclamou:
— Senhora, Jorge está muito mal e deseja vê-la imediatamente.
— Deus meu! Deus meu! — respondeu madame Hermet. Não me atrevo nem me atreverei jamais a entrar no quarto dele!
— O médico perdeu toda a esperança de salvação — replicou o preceptor. — Jorge a espera para lhe dar o último adeus.
— Diga a meu filho que o adoro e que me mata a angústia…
— Mas, senhora…
— Sim, sou uma miserável, uma infame, uma mãe desnaturada e cruel!
— Venha, senhora, por piedade!
— Não, não, o medo me aniquila, não sou dona de minha vontade…
Jorge estava agonizando e, com essa espécie de pressentimento que costumam ter os moribundos, havia adivinhado tudo e dizia:
“Se não se atreve a entrar, que passe pelo jardim e se apresente por trás dos vidros da minha janela, para que eu possa despedir me dela com um olhar já que não é possível dar-lhe o último beijo.”
O médico e o preceptor disseram a madame Hermet:
— A senhora não corre o menor perigo: haverá um vidro entre a senhora e ele.
Por fim a mãe concordou. Pôs na cabeça um denso véu, tomou um vidrinho de sais e saiu de seu quarto. Mas de repente parou gritando:
— Não, não posso! Tenho muito medo! Não quero, não!
E o moribundo, olhos voltados para a janela, esperava para morrer, ver passar pela última vez o rosto de sua adorada mãezinha.
Esperou durante muito tempo, e, ao cair da noite, se voltou para a parede sem pronunciar uma palavra.
Poucas horas depois exalou o último suspiro.
No outro dia madame Hermet estava louca.
Publicado originalmente no jornal “A República”, em sua edição de 26 de fevereiro de 1933. A pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica é de Iba Mendes (2016)