“Em busca de um novo rumo” – Florbela Espanca
Em busca de um novo rumo
Já homenzinho, nas longas noites de Inverno, acocorado à chaminé onde o madeiro crepite, lê embevecido, horas a fio, todo o Júlio Verne, histórias de piratas e corsários; o navio-fantasma enfeitiça-o; os naufrágios heroicos entusiasmam-no; foi durante anos todos os capitães de navios naufragados, morrendo no seu posto, aos vivas a Portugal!
No liceu sonha com a Escola Naval: é uma ideia fixa. Põe a um gato abandonado, repelente, todo pelado, encontrado numa suja travessa das imediações do liceu, o nome de “Marujo”; a uma galinha, a quem endireitara uma perna quebrada, ficou-lhe chamando “Canhoneira”; o cão, seu companheiro de folias, chamava-se “Almirante”.
No dia em que pela primeira vez envergou a linda farda da Escola, quando o estreito galão de aspirante lhe atravessou a manga do dólman azul escuro, foi como se São Pedro abrisse, diante dele, de par em par, as bem-aventuradas portas do paraíso. Era marinheiro! Sabe lá a outra gente o que é ser marinheiro! Para ele, ser marinheiro era a única maneira de ser homem, era viver a vida mais ampla, mais livre, mais sã, mais alta que nenhuma outra neste mundo! O seu forte coração, sedento de liberdade, era, no seu rude arcabouço de marujo, como um pequeno jaguar saltando do fundo da jaula, estreita e lôbrega, contra as barras de ferro que o retêm afastado da selva rumorosa.
Ao pôr pela primeira vez o pé num navio, lembrou-se do tanque da sua infância e sorriu; o mesmo clarão de antes, de fascinação e de triunfal alegria, iluminou-lhe os olhos garços; as pálpebras tiveram o mesmo estremecimento de voluptuosidade e cobiça. O rio sempre era maior que o tanque de outrora… Quando viu fugir Lisboa, afogada nas sombras violetas do crepúsculo, e deparou com todo o mar na sua frente, a sua alma audaciosa, rubra do sangue a escachoar dos seus irrequietos vinte anos, tomou posse do mundo, num olhar de desafio!
Quando voltou, porém, meses depois, vinha desiludido, furioso contra o seu sonho, que se tinha ido quebrar, como todos os sonhos, insulso e embusteiro, de encontro à banalidade ambiente. Aquilo, afinal, era uma maçada, uma tremendíssima maçada! O mar, todo igual, monótono embalador de indolências. Não havia corsários nem piratas; o navio-fantasma era um fantasma dos seus sonhos de outrora. O mar era mais lindo nos livros e nos quadros. Os poetas e os artistas tinham-no feito maior do que ele era; afinal, era pequenino como o tanque, acabava ali perto… Não tinha sido preciso arriscar nem uma só parcela de vida; não havia no seu navio mulheres e crianças a salvar; não havia naufrágios heroicos; o capitão nem uma só vez teve ocasião de ir ao fundo, no seu posto, aos vivas a Portugal! E sorria, com uma grande ironia nos olhos claros de expressivo olhar de lutador.
Renegou o seu culto sem pesar nem remorsos, com a mais completa das indiferenças e, dum dia para o outro, o mar que tinha sido a grande quimera da sua ardente imaginação de meridional, que tinha sido a sua nova, a sua amante nos dias felizes da adolescência, foi atirado para o lado, no gesto negligente de um bebê que atira pela janela fora uma concha vazia.
“Aquilo afinal era uma maçada, uma tremendíssima maçada!” e os olhos claros, investigadores, de olhar acerado como o das aves de rapina, procuraram ardentemente outra coisa. Franziu os sobrolhos, no ar recolhido e concentrado de quem excogita, de quem procura uma solução difícil… Olhou o céu profundo… e achou! Um avião! Era aquilo mesmo. Ser aviador é melhor que ser marinheiro! É abraçar no mesmo braço o céu e o mar! na linguagem dos símbolos, a âncora, definindo a esperança, nunca poderá valer as asas, que são a libertação. A âncora agarra-se ao fundo e fica, as asas abrem-se no espaço e penetram no céu. Seria aviador! E foi.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)