“Atrás da Catedral de Ruão” – Mário de Andrade
Atrás da Catedral de Ruão
Às vezes, até mesmo com pessoas presentes, lhe acontecia aquela sensação “afrosa”, como diriam as meninas, na meia-língua franco-brasileira que se davam agora por divertimento. E as duas garotas pararam a leitura, percebendo a quarentona estremecer. Se entreolharam. Alba perguntou, meia curiosa mas também já meia irônica por causa das manias da professora:
— Est-ce que vous avez froid par cette chaleur?…
— Non, ma chère enfant, je…
Hesitava, iniciando uma daquelas reticências que punham sempre as três tão fogosamente na proximidade do perigo. Lúcia ajudou, tomando ar maternal:
— Voulez-vous quelque chose?
— Non! non! non!… je… il faut bien que je vous fasse une confidence, mes petites amies, ah! ah! ah!…
E ria numa das suas risadas atuais, completamente falsas, corando com volúpia nas faces pálidas, sem “rouge”, a que a camada vasta do pó-de-arroz não disfarçava mais o desgaste. Era o jeito que tinha de não dar nenhuma importância ao que as três pressentiam ser importantíssimo. Afinal pôde continuar, entre confusa e misteriosa, dando de ombros:
— Il y a des jours où je sens à tout moment qu’un… “personnage” me frôle!
E acentuava o “personnage”, que repetia sempre num nojo despeitado. Mas Lúcia:
— Ça vous fait mal!
— “Mâle”, ma chère enfant, “mâ-le”. N’égratignez pas vos mots comme ça. “Mâ-le”.
Mas logo um gritinho de surpresa:
— Oh! je vous demande pardon, Lúcia! Je me suis trompée de lisière! Vous avez parlé du Bien et du Mal, j’ai pensé que vous parliez du maléfice des hommes, ah! ah! ah!…
E ria bem-aventurada.
Dona Lúcia se acaso soubesse o que estava se passando agora, decerto não retomava Mademoiselle para professora das filhas. Fora mais longe: na caridade viciosa a que transportara a sua pobre vida cortada, fizera da solteirona uma espécie de dama-de-companhia das filhas. Lúcia e Alba estavam quase moças, dezesseis e quinze anos desenvoltos, que a viagem desbastara demais, jogadas de criada em criada, de colégio em colégio, de língua em língua, de esporte em esporte. Seria injusto afirmar que sabiam tudo e mesmo ignoravam coisas primárias, fáceis de saber, mas que nunca as surpreenderam naquele aprendizado da malícia, feito ao léu do acaso. Mas isso elas compensavam por um saber em excesso de coisas imaginosas e irrealizáveis, que ficaríamos bem estomagados de saber, nós, usadores do mundo.
Além do inglês e do alemão em que Mademoiselle nem de longe podia agora competir com elas, voltavam falando um francês bem mais moderno e leal que o da professora, estagnada no ensino e nas suas metáforas suspeitas. “N’égratignez pas les mots comme ça!”, Mademoiselle vinha com irritação, ciosa da sua pronúncia. Ou, no horror incontrolável aos cotovelos, saltava: “Effacez vos coudes, mon enfant!” E agora mais que nunca ela “se trompait de lisière” – o que tinha uma história. Não vê que desde a infância Mademoiselle cantava uma canção antiga em que Lisette, indo em busca da primeira “paquerette” da primavera, topa com um cavaleiro na lisière du bois. Está claro que o cavaleiro tomava Lisette na garupa e sucedia ser um príncipe trali-lan-lère, trali-lan-la. Mademoiselle já tinha trinta anos feitos no Brasil, quando naquela vida mesquinha de lições e pão incerto, principiou se inquietando com a “paquerette” que ela estava desleixando de colher na primavera. Preocupação não muito grande, porque ela ainda se sentia moça na higiene excessiva do corpo e a blusinha professoral, alvíssima, cheia de rendas crespas. Um dia porém, sem querer, cantarolando a sua canção, no momento em que alcançou a lisière, Lisette parou sufocada, sem poder mais cantar. O que houve? o que não houve? Mademoiselle ficara assim, boca no ar, olhos assombrados, na convulsão duma angústia horrível. Nem podia respirar. Quando pôde respirou fundo, era mais um suspiro que respiro, e não se compreendeu. Naquele tempo ainda não podia “se sentir muito freudiana, hoje”, como as meninas vieram da Europa falando. Mademoiselle apenas não se compreendeu. Porém nunca mais que se lembrou da canção, nunca mais que a cantou. Poucos dias depois ela principiava a “se tromper de lisière” a cada confusão que fazia. E eram muitas as confusões.
Das melhores fora aquela quando se encontraram todas em Paris, porque Mademoiselle, cheia de apreensões, emprestara um dinheiro e partira na esperança de dizer o último adeus à mãe cardíaca. Mademoiselle chegou agitadíssima no palace, foi sentando esbaforida, “oh, mes enfants!”, esquecida até das alegrias do encontro. É que estava no hol do seu hotelzinho quando entrou um homem de cartola, cavanhaque, fraque, óculos escuros, o cavanhaque era “pointu, pointu! Je me suis dit: Ce personnage vient tuer quelq’un. Il monta au salon, pas une minute ne s’était passée, nous entendimes les cinq coups du pistolet. Dans le ventre!” E se auxiliou desvairada do gesto homicida: “Poum! poum! poum! et poum!…” Olhou dona Lúcia, olhou as meninas, assustada, indecisa. E numa das reconsiderações leais, de quando se enganava de “lisière: J’ai manqué un poum: ça fait cinq.”
Dona Lúcia achava graça em Mademoiselle. Quer dizer, talvez nem achasse graça mais, toda entregue altivamente ao seu drama e à representação discreta da infelicidade. As crianças ainda tinham ido com pai à Europa, um pai longínquo, surgindo raro na família e quase sem as enxergar. O dia em que partiram de Paris para os seis meses na Escócia, dona Lúcia lhes contou que o pai fora viajar também, noutra direção. Depois acrescentara pensativa que ele tinha muito negócio, a viagem decerto era comprida… E acabou decidindo que as filhas não deviam reparar na ausência do pai. Só por isso é que elas repararam. Mas tinham apenas dez anos de vida reclusa em São Paulo, nem sequer estimavam o pai: acharam meio esquisito e veio um malestar. Apenas se sentiram mais sozinhas e lhes passou no espírito uma nuvem interrogativa, um floco. Não decidiram nada, mas cinco anos de viagens, colégios, camelos, freiras, Dinamarcas e Palestinas, quando voltaram não supunham mais um pai. Dona Lúcia é que resolvera ficar eternamente infeliz e ficou.
Mademoiselle fora das primeiras pessoas que visitaram as recém-chegadas. Tivera um surto inadequado de lágrimas que até divertira as meninas. Se abraçara muito com elas, soluçando “mes PAUVRES enfants!”, com que ênfase no “pauvres”! Dona Lúcia até não conseguiu guardar o gesto de impaciência, e a professora envelhecida ficara muito reta na cadeira, envergonhada do arroubo anacrônico, aproveitando o esforço das outras visitas no reerguer da conversa, pra consertar a polvadeira lívida do rosto que as lágrimas listravam.
Estava mais destratadinha agora, isso via-se, as lições cada vez menos numerosas. Dona Lúcia voltava de alma fatigada, maternidade incorreta que aquele vaivém de colégios e hotéis transformara quase num dever. Adorava as filhas, mas era o êxtase inerte das adorações nacionais. Preferia se meter nas obras de caridade que a emolduravam de beatas de preto, muito deferentes com a ricaça. As meninas estavam mocinhas, carecendo mesmo de alguém, quase uma preceptora que as acompanhasse em festas, visitas, lhes tomasse conta da educação. E assim ajudavam Mademoiselle, coitada.
E Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas crespas, caíra naquele mundo mágico de anseios que era o das duas adolescentes, como conversaram! Como viajaram e viveram experiências desejadas, aqueles primeiros dias! Mademoiselle soltava “petits cris” excitadíssima, pedindo mais detalhes, detalhes, “ces norvégiens!” e esses catalães, e os árabes, “les touaregs!…”
— Mais nous n’avons pas vu les touaregs, Mademoiselle.
E ela, ar de mistério, sacudindo o dedo profético no ar:
— Heureusement pour vous, mes enfants!
Assim nascera em poucos dias um entrejogo de reticências e curiosidades malignas que agora devastavam a professora. Tudo não passava duma ceva divertida de quase imoralidade para as meninas. Um fraseio sem pontos finais, farto de “vous comprennez”, de “vous savez”, de “n’est-ce pas?”, em que era sempre Mademoiselle a imaginar imoralidades horrorosas, esbaforida de sustos.
Na viagem do Mediterrâneo:
—…Mademoiselle de Lavellais avait un petit mousse qui venait tous les jours dans sa cabine pour frotter son parquet. Alors… il fallait voir ça, Mademoiselle! ce qu’il frrrottait conscieusement!
— Ah, ah, ah, ela vinha com o seu riso de disfarce: “p’tite rabelaisienne, taisez-vous…”
As meninas inventavam palavras para se conversar diante dos outros. Eram como onomatopeias pressentidas, sem nenhum sentido nítido, próprias daquele mundo vago em que viviam.
— Vous savez… Nous avons entendu aujourd’hui une conversation entre une femme et son mari…
— Oh, mes enfants, interrompia: vous avez une curiosité très maladive! Je sais parfaitement quelles sont les conversations entre une femme et son mari, voyons! C’est quelque chose de honteux.
— Je voudrais bien savoir ce que c’est “tarlataner”. Ils parlaient tout le temps de “tarlataner”, de “haut tarlatanage”…
— Alba!… Ne prononcez jamais ce verbe intransitif! C’est très vulgaire.
Vivia resfriada na exigência das blusas brancas. Chegava afrosa, nariz vermelho, pingando. Lúcia lhe propunha logo um chá, mas com bastante rum “pour avoir des rêves”.
— Je ne veux pas de rêves! ela rufava as rendas, gritandinho, je ne veux pas de rêves! Les chats me suffisent!
E pressentira uma vergonha que a inundava de remorsos felizes. Pra que contara o seu olhar na janela enfrestada do quarto, o ouvido, a cara toda enfim na umidade de setembro, aprendendo o esperanto fácil dos gatos da noite? “J’attrape mes rhumes à cause de ces chats…” E se resfriava inda mais, devorando homeopatias. Nos seus quarenta e três anos de idade, Mademoiselle estava tomada por um vendaval de mal de sexo. Não se compreendia, nunca tivera aquilo em sua virgindade tão passiva sempre. Amara sim, duas vezes, mas nunca desejara. Agora, as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle. E Mademoiselle estava… só um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava: Mademoiselle estava no cio.
O vendaval. Ela sentia masculinos, “ces personnages” que a frolavam no escuso do quarto, na fala das meninas, na desvirginação escandalosa das ruas. Agora Mademoiselle anda de a-pé e procura no jornal onde é o lugar de encontro das multidões. Mas não vai lá, tem medo. Não é feliz, mas também não pode-se dizer que ficasse infeliz, Mademoiselle estava gostosa. E nessa paciência compensadora dos tímidos, ela ia saborear todos os dias nas conversas com as meninas um naco elástico dos gozos que em pouco elas irão viver. Quase sempre era assim mesmo: era ela a concluir em malícia as frases inventadas pelas alunas, que por certo ficariam muito atrapalhadas se a quarentona as deixasse continuar o que inventavam até um fim inexistente e sequer pressentido.
— Un après-midi nous avons vu un homme avec une barbe, vous comprennez… derrière la cathédrale de Rouen… Alors, vous comprennez…
— Ma chère enfant, j’estime que vous allez trop loin. Je vous défends de continuer! E decisória, pxx: Ce qui se passait derrière la cathédrale de Rouen, voyons! se passe derrière toutes les cathédrales!
Mas não só ela concluía assim as investigações das meninas. Era ela mesma a propor os assuntos mais salgados. E quando os propunha, chegando o instante da verdade, sem coragem pra continuar, ela exclamava o “quelle sottise” e reticenciava mais claro que tudo:
— Et alors… c’était comme derrière la cathédrale de Rouen.
A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que contava a catedral. Mademoiselle arranjava as rendinhas, agitada. Alba esperando, se entregara ao cacoete favorito, aquela mania desagradável de dobrar o pulso, forcejando pra tocar o antebraço com o polegar. Mademoiselle volta à vida, com a irritação:
— Alba, pourquoi faites-vous ça…
E a menina, entre envergonhada e atacante:
— Excusez-moi, Mademoiselle… c’est de la cochonnerie.
— Cochonnerie!
Aquilo a espantava enfim. As meninas andavam empregando “cochonnerie” sem o menor propósito. Alba trocou o olhar preventivo com a mana, mas contendo o riso, se escondeu numa inocência espantada, afirmando que a professora mesmo é que dissera serem “cochonneries” as coisas inúteis.
— Moi, mon enfant!
— V’oui! le jour que les ouvriers se donnaient la main!
O caso é que três dias antes elas liam no jardim aproveitando o solzinho raro daquele setembro chuvoso e passara na rua um casal de operários se dando a mão. Decerto o rapaz estava querendo dizer coisas bem íntimas, porque a moça procurava se desprender, ambos forcejavam e riam numas gargalhadas que enfeitaram toda a rua. Mademoiselle saiu da leitura e se perdeu, seguindo os namorados com os olhos e a vida. As meninas também tiveram a atenção chamada pelos risos, mas percebendo o que era, apenas dois namorados, quiseram voltar à leitura geográfica lhes contando coisas mais novidadeiras. Mas o perdimento de Mademoiselle despertou a vontade de maliciar. Alba disse:
— Qu’est-ce qu’ils font?
Mademoiselle corou vivo e trouxe os olhos para as duas. Mas assim pegada em pecado não lhes aguentou o olhar agudo, já rindo muito. Quis disfarçar, arranjando a rendinha, e murmurou o mais inocente que pôde fingir, uma resposta que considerou perfeita:
— Ils se donnent la main. Mas Lúcia no sufragante:
— Pour quoi faire!
Mademoiselle fitou indignada a menina. Chegou a estremecer na visão. Pois elas bem não tinham visto o que se passara atrás da catedral de Ruão! Deu um daqueles muxoxos, meio nojo, meio desnorteamento, que lhe mereciam todas as cochonerias dessa vida:
−…pour quoi faire… pxx!…
Alba e Lúcia a examinavam deliciadas. Mademoiselle fazia força pra se acalmar, “pour quoi faire…” Ela bem sabia que não se deve deixar perguntas de criancinhas sem resposta. Era melhor fingir desinteresse por aqueles dois “personnages gluants”, se dando a mão com tanta imoralidade. E voltou ao livro enquanto ainda sussurrava só consigo, aturdida, “pour quoi faire”…
A leitura continuou, e as meninas se engolfaram nela, num átimo esquecidas do incidente que não rendera bastante. Mas Mademoiselle eis que fechava o seu livro de supetão e o põe com ruído na mesinha. A olharam numa surpresa que logo se transformou em assombro quando viram a cara da mestra. Naquela calma veludosa de paz Mademoiselle estava completamente transtornada, olho em desvario pulando de Lúcia pra Alba, de Alba pra Lúcia, boca entreaberta num esgar, as rugas fantasistamente se mexendo.
— Laissez votre livre de coté, mes enfants! Lá, sur le banc!
As meninas obedeceram maquinais, sem vontade nenhuma de rir, preocupadas. Mademoiselle afinal exclamava, cheia da vitória:
— Et bien!?…
Não sabiam o que se passava, já meio hirtas agora, garantidas que se se olhassem não aguentavam, caíam na gargalhada.
— Et bien! Mademoiselle as incitava no triunfo: Avez-vous bien réfléchi?
— Je ne sais…
— Taisez-vous! Dites! Vous voilà la main dans la main, tout à fait comme (mastigava sílaba por sílaba, no desprezo colérico) comme ces deux personnages qui se promenaient tout à l’heure, dites! Qu’ est-ce que vous sentez, dites!
— Mais…
— Taisez-vous!
Alba, menos capaz, acabou com aquela bobagem:
— Moi, je ne sens rien.
— Et vous, Lúcia! dites! Vous êtes plus agée que votre soeur, vous devez sentir quelquer chose! triunfante, triunfante.
Mas Lúcia, um bocado irritada, se desprendeu da irmã, dando de ombros. Irritada apenas? Lhe seria impossível se compreender naquela desilusão apreensiva, que a deixava numa vaga esperança de chorar. Mademoiselle estava soberba, muito esguiazinha, magistral. Revelou, se sentindo absolutamente dominadora:
— Voilà. On ne sent rien, vous savez! Il y a des gens ignorants qui font ces cochonneries inutiles, mais on ne sent rien, mes enfants, on ne sent absolument rien. Retournons à notre géographie.
De-noite, quando se arranjavam pra deitar, entrava o ar pesado, oleaginoso, de rosas. Alba se olhou muito no espelho, sentada. Estava velha, com medo. Suspirou fundo e de repente se enforcou com ambas as mãos. Veio descendo com elas pelo corpo, pelos seios nascentes, como naquela página do “Médecin malgré lui” em que Mademoiselle escrevera em vermelho “page condamnée” pra que as alunas não lessem. Lúcia, escutando o suspiro, chegou-se pra irmã. Alba recusou vivo o contato, mas lhe veio a frase diária, pra se desculpar da grosseria:
— Me sinto freudiana, hoje… Acho que vou sonhar tarlatanagens.
Lúcia censurou:
— Olhe, Alba, você carece acabar com essas histórias… Você anda muito complexenta demais.
Mas perdoou logo. Deu um piparote nos cabelos pesados da mana:
— Cochonneries inutiles.
Caíram na risada as duas. E tanto as cochonneries como as cochonerias tarlatanaram daí em diante no arrulho dúbio delas.
Mademoiselle ficara tonta com a referência de Alba ao casal de operários. Recordou imediatamente a cena de que se saíra com tanto brilhantismo, imaginava. Pois Alba compreendera que o que faziam os dois namorados eram “cochonneries inutiles”! Estava desnorteada porque “les cochonneries ne sont pas inutiles, evidemment!” reconhecia no íntimo, imaginando como sair da enrascada. Enxugou lerdo o nariz. Desistiu. Confessou devagar, pesando as palavras, conciliatória:
— Ma chère enfant… il ne faut pas dire des choses inutiles que ce sont des cochonneries, par exemple!… Les cochonneries sont… des cochonneries! E exaltada de repente, se sacudindo toda: S’embrasser sur la bouche, voilà une cochonnerie! Une chair vive contre une chair vive, pxxx!
Se ergueu pra partir. Tinha que ir à farmácia homeopática, tomar dois bondes, e o Angélica dava uma volta enorme até chegar na praça da Sé, se desculpou. Aquela evocação bruta de carnes vibrantes se ajuntando a escorraçava aos repelões. Enxugou o nariz.
Descendo do bonde na praça, embora a rua da farmácia ficasse ali mesmo, Mademoiselle é invadida por um vendaval misterioso, sem nexo. Como é que estava andando assim noutra direção, subindo a praça, enveredando para a catedral! O bom-senso a obrigou a se definir, não era possível “se tromper” tamanhamente “de lisière”. Mademoiselle se dirigiu para a farmácia, inquieta muito, batida por desilusões. Comprou o alho sativo e mais vários tubinhos de pérolas alvas. Chegou à porta, pôs o embrulho na bolsa, estava escurecendo e agora a inquietação já se transformava num desvario completo. Ficou ali, olhando a gente muita que passava apressada. Não sabia. Como que uma voz a chamava, uma voz fortíssima, atordoando. Não era voz, era o brouhaha dos bondes, dos autos, da gente. Mas o destino é que mandava os passos dela. Tinha que voltar e em vez o destino, não era o destino nem a voz não, “quelle sottise!” em vez estava subindo exagitada, frolando nos homens. Contrária à sua direção, Mademoiselle sobe, chamada pela catedral. Apressa o passo, estava quase correndo. O pavor a tomara, era um vento medonho na praça, sopro de sustos tamanhos que os arranha-céus se desmoronam com fragor. Chega o fragor. Chega o medo horrível, mil braços que a enforcassem, mil bocas, “une chair vive contre une chair vive, lhe rasgam a blusinha, no ventre! e ela trapeça sem poder mais. Tem que parar. Se encostou nas pedras da abside, ia cair. Os homens passando afobados, meio se viraram na indecisão, sem se decidir a perguntar se aquela velhota quer alguma coisa. Pode estar doente, pedir auxílio, perdiam tempo. Passavam. Afinal o guarda deu tento na coitada.
— A senhora precisa alguma coisa?
Mademoiselle tirou a mão dos olhos, muito envergonhada, refeita de súbito com a pergunta. “Non, merci”, mas se percebendo noutra “lisière”, consertou: Não, obrigada. E agora, já sem sustos mais, num desalento vazio, termina de contornar o “derrière” da catedral. Já não era mais ela que “bousculava” os outros, como diriam as meninas, a multidão é que a busculava, a empurrava, a sacode. Mademoiselle não enxerga mais, não sente. Nem percebe que afinal toma o terceiro ou quarto Angélica chegado. Nunca que imaginasse o acontecido, o mal de sexo já está grande por demais, e Mademoiselle precisa duma experiência maior pra alcançar a verdade.
As ruas agora já estavam mais visíveis na entressombra, mais largas, seguindo por avenidas ricas. Mademoiselle enfim reconheceu com franqueza que já vinham descendo pela avenida Angélica. Voltava pouco a pouco à vida. Mas se estivesse no seu natural iria até a rua das Palmeiras e tomava outro bonde que a levasse à Sebastião Pereira, onde ficava o segundo andar da sua pensão. Sem elevador. Mademoiselle gosta pouco de caminhar. Mas eis que dá um puxão brusco na campainha, o bonde para espirrando. Mademoiselle desce e se lembra de enxugar o nariz, pra que desceu!
Cortando pelas ladeiras oblíquas se dirige à pensão, anda. Acontece que assim, no crepúsculo caseiro, numa última esperança de antemão desenganada, Mademoiselle passa pelo “derrière” da igreja de Santa Cecília. Assim mesmo uns sustinhos a tomaram, o respiro cresceu, foi agradável.
Mademoiselle chega sem muita desolação ao seu segundo andar. Havia um rol da engomadeira, difícil de ajustar, blusas e blusas. Mademoiselle examina as rendas com aplicação. De vez em quando para, trata de enxugar o nariz, ah! o remédio. Se esquecera dos remédios mas agora é tarde. Vamos deixar o remédio para depois do jantar. Mademoiselle ergueu súbito a cabeça, voltou-a pro lado, esperando, olhos baixos. Ficou assim por algum tempo, ansiosa, no mal-estar quase suave, e como nada sucedesse, como sempre, retornou ao cuidado de encrespar com mais minúcia a rendinha engomada da blusa. Agora vivia assim, na virulência nova da sua solidão, eis que estremecia. Lhe vinha a sensação até brutal de ter alguém junto de si. Sobrestava, tinha que sobrestar por força a ocupação qualquer em que estivesse, meio que se voltava e ficava esperando, olhos baixos. Nunca que ela olhasse com franqueza o lado, o canto, a porta donde lhe vinha a presença do homem. Ela desoladamente sabia não haver ninguém ali.
Mas daquela aventura horrível lhe fica um fraco pelo “derrière” das igrejas. Não vê igreja solta que não lhe brote a fatalidade de passar por detrás. A desilusão não a desilude nunca. Mademoiselle passa numa brisa agradável de apreensões, apesar do pleno dia, que ela nunca sai de-noite mais, tem um medo! Sabe de-cor os sacristães cuidadosos que não deixam nas reentrâncias das absides a prova dos homens “gluants” da noite. Não vem mais no seu bonde, da casa de dona Lúcia até a pensão. Para uma esquina antes do largo de Santa Cecília. Até imagina que está precisando andar mais a-pé. Vem. Está muito corretazinha e retazinha. Vem, faz a volta da igreja, lhe bate a brisa de sustos, é agradável. Mademoiselle estuga o passo e chega ofegante à porta da sua pensão.
Nesse dia as meninas a atenazaram por demais. A cidade vinha se arrepiando de pretensões políticas porque afinal tinham lançado mesmo o já muito proposto partido da oposição, o Democrático. Dona Lúcia embarcara na onda que lhe trazia um gasto novo de volúpias. Tinha parente importante no P.D. e nessa tarde, pela primeira vez depois de sete anos, os salões dela se abriam para o “cocktail” aos chefes do Partido. Dona Lúcia decidiu que as filhas haviam de aparecer nem que fosse um momento. Fazia questão de se apresentar ornada de resultados, bem matrona, imponente em seus traços de infeliz. Mademoiselle devia comparecer, como preceptora.
As meninas ficaram de lado, era natural. A reunião era quase só de homens, poucas senhoras e vários sonhos políticos de subir. O velho conselheiro comparecera, na sua figura raçadíssima, “avec une barbe, vous savez”. E assim, olhando de longe tantos homens que a gesticulação política ainda tornava mais ferozes, Alba e Lúcia tinham caído em cima da professora.
Era no fim daquela primavera, “et alors, vous comprennez”, Mademoiselle chegara mais resfriada que nunca, o nariz até inchara um pouquinho, e com o embrulho esquisito, um cilindro comprido, pajeado cuidadosamente junto ao seio. As perguntas das meninas foram tão insistentes, as suposições tão maliciosas que Mademoiselle precisou confessar. A homeopatia não lhe dava jeito mais ao resfriado, “bronchite” ela insistia, no eufemismo contraído de moça, pra evitar de qualquer forma que esses brasileiros falassem em “constipação” pxx! Pois então se lembrara de comprar aquela garrafa de rum, confessou envergonhadíssima, “un tout petit peu!” que ela quase gritava ameaçadora, diante do riso das meninas.
O jogo principiara logo muito esquentado. Estavam as três mais que freudianas, daquele recanto da saleta espiando tantos homens que deviam ser importantes, fazendo tudo o que desejavam. Os “cocktails” passavam, “cocktails” fortes bem pra homem, dona Lúcia se recusava a beber. Mas as meninas principiaram tarlatanando cada vez mais audaciosas. Mademoiselle não continha mais ninguém.
−…vous savez pourquoi ils se sont installés au dessus du théatre Santa Helena, n’est-ce pas?…
— Mais non! Racontez-moi ça.
E Lúcia sem saber onde vai parar:
— Après les spéctacles ils montent au Parti et font de choses affreuses, vous comprennez, n’est-ce pas!
— Ma chère enfant, taisez-vous. Voyons… mais qu’est ce qu’ils peuvent bien faire alors?
— Vous comprennez, n’est-ce pas! Ils ont fait un trou, Mademoiselle, un énorme trou! Monsieur le Premier Sécrétaire s’est mis tout nu sur un énorme plat, et on l’a descendu dans le théatre, vous comprennez ce qui se passait…
— Lúcia, je vous défends de continuer! peremptória, à bout.
— Mais, Mademoiselle, c’est qu’ils commencent tous a roucouler!
— Tais-toi! tais-toi! ela espirrava na sua binaridade autoritária atual, imagem derradeira da autoridade que ela não conseguia mais ter sobre aquelas pequenas rabelaisianas da primavera. “Tais-toi! tais-toi!” pulandinho de gozo entre as duas garotas, no desvão da saleta, emborcando a taça de “cocktail”. Dona Lúcia acabara suspeitando alguma coisa de anormal na alegria daquelas três, ordenara às meninas que subissem. E se foram as três para cima, logo calmas na apreensão de algum malfeito grave.
Só agora percebiam que a noite caíra. O relógio antigo do estúdio marcava oito horas. Um susto gélido de brisa entrou pela janela e invadiu Mademoiselle. Atchim, ela espirrou estremecendo. Foi se encurtando muito, ficou pequeninha, quase um nada vivaz de “chair vive”, resumida a uma girândola de espirros em surdina. Teve medo, era muito tarde. Ainda imaginou esperar que a festa acabasse, estava no fim, e pedir a dona Lúcia que a fizesse acompanhar por qualquer um dos criados de ocasião. Mas ficou logo horrorizada com as audácias dele, decerto quis kidnapá-la, mas os outros passageiros do bonde intervieram, e ele (preferia o que a servira) lhe deu o braço pra descer e a carregou possante, encostando a mão no peito dela, bem no peito. Criou juízo e decidiu ir só.
O bonde felizmente vinha cheio até demais, tinha uns seis passageiros derramados pelos bancos e Mademoiselle, acalentada, se sonha defendida por eles. Se o criado viesse, eles derramavam sangue na luta, bastante sangue. E que coragem deles, que luta feroz! Os defensores bufavam de cólera, os socos caíam, o auto não respeitava o silêncio da noitinha e num momento, o que foi! os bondes de-noite correm tão desabalados pelos bairros, era aquele mesmo tumulto da praça da Sé que a tomava. Seria uma voz? seria o destino? Mademoiselle já mal respira e toca brusco a campainha. O bonde para com um grito horrível, é um assassinato, aliás, ela corrigiu, “assassínio” em português. Mademoiselle nem desce, salta, pula, foge, se livrando, faz o quarteirão sem pensar, não há multidão que a buscule, as árvores, as árvores é que a machucam, saem sombras kidnapantes delas, os lampiões fazem trous, trous, doloridíssimos no ar desmaiado.
Mademoiselle percebe nítido, mas com uma nitidez inimaginável de tão fatal, que chegou no largo de Santa Cecília. Seguirá reto? É só atravessar o largo pela frente da igreja e, uns cem passos mais, a porta salvadora da pensão… Mademoiselle sabe disso, decide isso, quer decidir isso, mas agora é tarde, os passos a contrariam e a conduzem atrás da catedral de Ruão. É um silêncio de crime, o bairro dorme em paz burguesa. Mas tinha que suceder. Duma das ruas que desembocam na curva da abside, saltam dois homens, “avec une barbe?” não viu bem, mas “très louches”, que se atiram a persegui-la.
Atchim! que ela explodiu, exagerando o grito de socorro com volúpia. “C’est pour les advertir que je suis enrhumée”, ela se pensa, heroicamente, na presciência de que as “constipações” protegem contra os assaltos à virgindade. E atchim! ela repetiu mais uma vez, sem vontade nenhuma de espirrar, ameaçadora, se escutando vitoriosa no deserto da praça. Poum… poum… poum… Os dois perseguidores vinham apressados, passo igual. E o som dos sapatões possantes, eram possantes, devorava o atchim espavorido da pucela. E as passadas reboam mais vitoriosas ainda no silêncio infeliz do largo, ninguém para a salvar, só as árvores inúteis como “cochonneries”, enquanto os dois homens a vão alcançar. Não pode mais. Cairia nos braços deles, e eles a violariam sem piedade, exatamente como sucedera atrás da catedral de Ruão.
Mademoiselle apressa o passo ainda mais. Mas talvez o temor a imobilizasse como ao passarinho no olho da cobra: dá uns três passos corridinhos e logo quase para de andar, esperançosa, sussurrando uns passos lerdos, curtos. Poum… poum… poum… Ela avistava, era um fragor de catedrais desmoronando, ela enxergava muito bem os coruchéus despencando em linha reta sobre ela, arcobotantes agitados se enrijando, a flecha zuninte da abside, o crime seria hediondo porque ela havia de se debater com quanta força tinha, só a encontravam no dia seguinte desmaiada, as vestes rotas, sangrentas, o que diriam as meninas! muito sangue, poum… poum… já lhe punham, se lhe pusessem as mãos gluantes nos ombros, ela havia de berrar.
Afinal um dos homens agarra-a pelo pescoço. Mas segurara mal. Mademoiselle deu um galeio pra frente com o pescocinho, mais uma corridinha e conseguiu se distanciar do monstro. Mas o outro monstro agora alargava muito o passo e ela percebeu, a intenção dele era estirar a perna de repente, trançar na dela bem trançado e com a rasteira ela caía de costas pronta e ele tombava sobre ela na ação imensa. Porém ela fez um esforço ainda, um derradeiro esforço, deu um pulinho, passou por cima da perna e aqui ela chorava. Quis correr, não podia, porque o outro monstro veio feito uma fúria, ergueu os braços políticos e espedaçou-lhe os seios que sangravam. Mademoiselle deu um último gritinho e virou a esquina.
Mademoiselle virou a esquina da sua rua. Mademoiselle virou a esquina. Sua rua. Enxergou, era tão oferecidamente próxima a porta da pensão, e ela não teve mais esperança nenhuma. Nunca mais que havia de passar por trás das igrejas, e no dia seguinte as meninas desnorteadas topavam com aquela professorinha de dantes, longínqua, pura, branda. Mademoiselle estava salva, salva! E por sinal que a porta da pensão também estava alvissareiramente iluminada ainda, pois eram apenas vinte e uma horas. O copeiro na porta, homem de seu dever que a defendia se preciso, conversava com as criadas do portão vizinho. Um cheiro leve de acácias.
Mas isto Mademoiselle não podia sentir, nariz que era um tomate raçado de cooperativa. Sentiu mas foi que estava irremediavelmente salva pra toda a vida e então pôde correr. Correu, já num passinho lúcido, sem sofismas, e o pelo do renard falso lhe fez uma brisa tão irônica no nariz que, quando parada na porta, primeiro ela teve que atender ao tiroteio dos espirros. E foram atchim, atchim, atchim e atchim. “J’ai manqué un atchim, n’est-ce pas?”
Foram cinco. Pois assim mesmo os perseguidores lá vinham chegando atrás dela. Só que agora Mademoiselle estava mesmo salva pra todo o sempre e pôde reagir. Os homens vinham chegando em suas conversas distraídas. Se plantou no meio da calçada, fungou um sexto espirro inteiramente fora de propósito, tirou mais que depressa dois níqueis da bolsa. Os homens tiveram que parar, espantados, ante aquela velhota luzente de espirro e lágrima, que lhes impedia a passagem, ar de desafio. E Mademoiselle soluçava as sílabas, na coragem raivosa de todas as ilusões ecruladas:
— Mer-ci pour votre bo-nne com-pa-gnie!
E lhes enfiou na mão um níquel pra cada um, pagou! Pagou a bonne compagnie. Subiu as escadas correndo, foi chorar.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)