“As Quatro Ideias Capitais dos Presos” – João do Rio
As Quatro Ideias Capitais dos Presos
Às vezes, numa volta pelo pátio, a conversar com Obed Cardoso, eu via o elegante Dr. Saturnino de Matos passar, como se fosse dar milho às pombas. E, se depois de admirar o Dr. Saturníno apontavam-me, enfiado no zuarte do estabelecimento, com o número de metal à cinta, um modesto gatuno ou um simples assassino cujo comportamento exemplar os transformava em serventes, eu deixava o gentil Obed e gozava o calão dessas interessantes flores de patifaria.
Há na detenção reincidentes exemplares e casos de psicologia curiosíssimos. O Sargento da Meia-Noite, ladrão temível, uma espécie de transformista da infâmia, é passar os umbrais do jardim onde descansa o crime, para se tornar um cordeiro artista, uma espécie de frade medievo. Recolhido ao cubículo, inaugura logo a sua arte de miolo de pão. Faz flores, bonecos, santos, animais; pinta-os, remira-os, manda-os vender. Parece regenerado. Todos sabem, entretanto, que, uma vez livre, o Sargento não resistira à tentação de invadir a casa alheia. Os “punguistas”, inofensivos lá dentro, tão certos estão de continuar a roubar que o Braga Bexiga me dizia:
– No dia em que sair, tomo logo um bonde e limpo a primeira carteira.
– Mas é difícil.
– Para quem conhece a arte não há dificuldades. Eu trabalho desde criança e tive como professor o Zezinho.
– Vamos a ver esse trabalho.
– Se V. Sa me dá licença, eu vou tirar duas notas de duzentos que o sr. Obed pôs agora no bolso da calça.
Na outra extremidade da sala, Obed, sem que ninguém desse por isso, acabara de contar o seu dinheiro e de metê-lo no bolso da calça. Bexiga, trêmulo, com os olhinhos piscos, continuava ali a exercitar as suas criminosas observações. Capoeiras, assassinos, como Carlito e outros, reincidentes, condenados a trinta anos, exprimem a certeza de que continuarão lá fora a vida anterior. Carlito, mesmo, disse-me um dia:
– Deus aperta, mas não enforca!
Máxima muito mais profunda que quantas escritas pelo desfastio erudito do defunto Marquês de Maricá.
Os cientistas da penitenciária veriam nisso um problema a resolver, o problema de emendar o criminoso. Um, a quem eu contava o desplante dos recidivos, assegurou-me:
– É preciso aplicar o método inglês, as sentenças cumulativas, sistema de penas progressivas cuja duração é calculada pelo quociente das reincidências. Um preso condenado por ladroeira, se entrar outra vez pelo mesmo crime, tem a pena duplicada; se entrar terceira, triplicada, e assim por diante. Isto acabaria com a falha do código, o broquel de defesa dos gatunos, que nos seus artigos admiráveis tem a generalidade da pena para toda a sorte de escapatórias. Leia o dr. Monat, antigo diretor geral prisões na Índia; leia Baker, juiz de paz em Gloucester; leia Browne. As reincidências, eles o provam, diminuíram em toda a Inglaterra.
Outros perdiam-se em frases confusas, falando da necessidade urgente de reformar o nosso sistema de detenção, de pôr em ação os dois meios definitivos de corrigir: moralizar e intimidar. Eu achei mais interessante estudar as idéias e os estados da alma dos detentos.
A detenção tem idéias gerais. A primeira, a fundamental, definitiva, é a idéia monárquica. Com raríssimas exceções, que talvez não existam, todos os presos são radicalmente monarquistas. Passadores moeda falsa, incendiários, assassinos, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, são ferventes apóstolos da restauração. Não falam, não fazem meetings, não escrevem artigos como o Dr. Cândido de Oliveira ou o conselheiro Andrade Figueira – sentem intensamente, sem saber explicar a razão desse amor.
– É verdade; qual o governo que prefere? Eles riem, meio tímidos.
– Eu prefiro a monarquia.
– Por quê?
Sim! Por que malandros da Saúde, menores vagabundos, raparigas de vinte anos que não podem se recordar do passado regime, são monarquistas? Por que gatunos amestrados preferiam sua majestade ao dr. Rodrigues Alves? É um mistério que só poderá ter explicação no próprio sangue da raça, sangue cheio de revoltas e ao mesmo tempo servil; sangue ávido por gritar não pode! mas desejoso de ter a certeza de um senhor perpétuo.
O fato curioso é que para esta gente, de outro lado da sociedade, não basta pensar, é preciso trazer a marca das próprias opiniões no lombo. Raríssimos são os presos que na detenção não são tatuados; raros são aqueles que entre as tatuagens – lagartos, corações, sereias, estrelas – não têm no braço ou no peito a coroa imperial.
A outra idéia é a crença de Deus – uma verdadeira crise religiosa. Rezar, pedir a Deus a sua salvação, trazer bentinhos ao pescoço, ter entre os seus papéis imagens sagradas, não significa, de resto, regeneração.
Homens da espécie do Carlito ou do Cardosinho fazem o sinal da cruz ao levantar da cama para matar um homem horas depois; Serafim Bueno, um criminoso repugnante, tem uma fé surda no milagre e em Nosso Senhor; o Carrasco, gatuno torpe, treme quando se fala no castigo do céu – mas nenhum deles se regenera. Deus é apenas a salvação das suas patifarias na terra, e tanto é assim que não há desordeiro assassino em cuja mão direita não apontem, tatuadas, as cinco chagas de Cristo. Sabem a interpretação dada a este sinal?
A piedosa interpretação de que com a mão, ajudada por tão grande símbolo, não se atira à cara de um sujeito uma tapona sem que o contendor não caia ao chão!
Esses pobres entes são o normal. Há, entretanto, verdadeiras crises místicas como a desse convulsivo tratante Afonso Coelho. Afonso escreve diariamente cartas fervorosas de regeneração; reza, manda epístolas insultuosas a outros detentos, verberando-os porque a sua fé não é forte. Em todas as cartas há erros de ortografia lamentáveis e um sopro de milagre. Ao mesmo tempo, porém, Afonso Coelho esgaravata no pobre cérebro o meio de fugir. Arranja limas e corta varões de ferro. O administrador, atento, quando o trabalho está pronto, muda-o de cubículo. Vai ao tribunal e, em caminho, ainda na detenção, atira-se como um tigre, tentando escalar um portão. Os guardas têm que o puxar pelas pernas e lutar com ele, braço a braço. Traça planos de fuga, escreve indicações a amigos para abrirem portas num muro, combina fugas estranhas. O administrador guarda uma porção destas cartas, interceptadas por sua ordem. Ultimamente, visitado por um jornalista a quem dá a honra de falar, depois de discutir direitos, de meter os pés pelas mãos com a sua vaidosa mania de querer ser inteligente, acabou dizendo:
– Qual, meu amigo, já estou muito conhecido aqui. Se sair, embarco para a Europa. Lá o meio é maior.
E, cheio de doçura, enquanto desesperadamente a sua esperteza se arremete contra as grades preventivas, esse mesmo homem sonha com a Virgem, bate nos peitos e faz crer aos ingênuos ou aos interessados reformadores que é um santo no caminho de Damasco.
A terceira idéia quase obsessiva é a imprensa. Há os que têm medo de desprezá-la, há os que fingem desprezá-la, há os que a esperam aflitos. O jornal é a história diária da outra vida, cheia de sol e de liberdade; é o meio pelo qual sabem da prisão dos inimigos, do que pensa o mundo a seu respeito. Não há cubículo sem jornais. Um reporter é para essa gente inferior o poder independente, uma necessidade como a monarquia e o céu. Anunciar um reporter nas galerias é agitar loucamente os presos. Uns esticam papéis, provando inocência; outros bradam que as locais de jornais estavam erradas, outros escondem-se, receando ser conhecidos, e é um alarido de ronda infernal, uma ânsia de olhos, de clamores, de miséria… Os desordeiros acusados de ferimentos graves, com muitas mortes na consciência são, por sua natureza, vingativos e conhecem bem os reporters. E, entretanto, apesar das notícias cruéis, nunca nenhum se atreveu a tentar uma agressão. José do Senado pede:
– É com a imprensa que eu conto. O senhor foi cruel, porque não sabia…
Carlito teve, nesse dia, uma frase completa:
– Eu sei que foi o senhor o autor daquela descompostura contra mim, no jornal. Mas também estou vingado. Se não fosse eu, o sr. não escrevia tanto.
Os outros rojam, como as beatas nos altares dos santos impassíveis.
– Não fale de mim, seu reporter; deixe o meu nome sossegado, não fale!
E no dia seguinte percorrem, loucos, a folha para ver negrejar no papel poderoso a sua celebridade.
Há mesmo um preso, Antônio F., que me entregou um artigo de psicologia da imprensa. Antônio acha que, sendo o papel da imprensa educar os povos, ensinar os homens a serem até bons esposos, o nosso jornalismo é tudo quanto há de errado, de imbecil e de vazio. “Nada!” brada ele; “que aproveitam à nobreza, ou à plebe, estas banalidades! Nada! Que valem, portanto? Nada!… E nada, nada e nada milhões de vezes nada repercutia o eco do Prata ao Pará, se não corrigirem a grande força.”
A quarta idéia, a última, é a idéia fixa, a idéia constante de todos os detentos – escapar, ficar livre, burlar a prisão, apanhar novamente a liberdade. Os reincidentes conhecem as coisas do foro tanto quanto com os advogados de porta de xadrez: sabem chicanas, artigos do código, contam os dias de prisão, fazem petições de habeas-corpus, assinam declarações de inocência de outros, para que outros assinem declarações idênticas, vivem numa tensão nervosa extraordinária. A religião, que lhes dá a esperança, o jornal, que lhes lembra a rua, acendem a labareda desse desejo, e é principalmente a idéia da liberdade que modifica o humor dos presos, que faz freqüentadas as solitárias, que os torna ora alegres, de uma extrema bondade, ora agitados e terrivelmente maus.
Esses quatro ideais da generalidade dos presos fizeram-me pensar num país dirigido por eles. Um rei perpétuo governaria os vassalos, por vontade de Deus. Os vassalos teriam a liberdade de cometer todos os desatinos, confiantes na proteção divina, e a imprensa continuaria impassível no seu louvável papel de fazer celebridades. Seria muito interessante? Seria quase a mesma coisa que os governos normais – apenas com diferença da polícia na cadeia, como medida de precaução. Tanto as idéias do povo são idênticas, quer seja ele criminoso quer seja honesto!