“Ardil” – Artur Azevedo

Artur Azevedo

Ardil

— A que devo o prazer de uma visita a estas horas? perguntou a viscondessa ao entrar na sala, onde havia quinze minutos, a baronesa castigava o tapete com um pé pequenino e admiravelmente calçado.
Ergueu-se a formosa visitante, e suspirou, aliviada pela presença da amiga íntima. Depois dos beijinhos consuetudinários, sentaram-se ambas.
— O visconde ainda dorme?
— Ainda, e não acordará tão cedo: são apenas sete horas.
— Posso falar sem receio?
— Estamos completamente sós.
— Temos então algum mistério? interrogou a dona da casa, consertando as dobras da sua magnífica bata de rendas brancas. Histórias do coração, aposto?
— Do coração? Não sei. Há quem diga que estas coisas nada tem a ver com ele, mas com a cabeça… Em todo caso, fazem padecer.
— A quem o dizes!
— Não durmo há duas noites… Há três dias não abro o piano… Amor? — sei lá! Despeito, raiva, talvez…
— Conta-me tudo, disse a viscondessa, enxugando com os lábios duas lágrimas que tremeluziam nos olhos da amiga; conta-me tudo. Os meus trinta e nove outonos estão, como sempre, às ordens das tuas vinte e cinco primaveras. Adivinho que se trata do Bittencourt.
— Fale mais baixo.
— Não tenhas medo.
— Sim, venho ainda uma vez ao encontro dos seus conselhos… Há oito meses a senhora ensinou-me a subjugá-los, a escravizá-lo aos meus caprichos, aos meus ímpetos, ao meu amor; hoje, que ele se mostra arredio, farto e insolente, só a senhora, com a sua experiência, a sua calma, o seu bom senso e, sobretudo, a sua amizade, me indicará os meios de reconquistá-lo sem triunfo para ele nem humilhação para mim. A senhora teve quatro amantes…
— Três, interrompeu serenamente a viscondessa; ao quarto não se pode ainda aplicar o pretérito mais que perfeito: está no pleno gozo da sua conquista.
— Pois bem, três, e nenhum deles a desprezou; no momento oportuno a senhora desfez-se habilmente de todos três, sem deixar a nenhum o direito de dizer, ao vê-la passar pelo braço do visconde: Fui eu que não quis mais…
Houve outra pausa.
— Imagine, prosseguiu a baronesa, imagine que há mês e meio só tenho estado com ele no Lírico, durante os espetáculos. Procura, para cumprimentar-me, justamente as ocasiões que o meu marido está no camarote. Escrevi-lhe duas cartas e um bilhete postal; não tive resposta!
— Que horror! murmurou a viscondessa, profundamente impressionada.
— Vamos… diga-me… aconselhe-me! Que devo fazer?… Estou irresoluta… a senhora bem sabe… é o meu primeiro amante…
— Deixa-me pensar, filhinha, deixa-me pensar. Estas coisas não se decidem assim, num abrir e fechar de olhos! E, depois de refletir alguns segundos, tamborilando com os dedos nos braços da poltrona, a viscondessa inquiriu com a seriedade de um velho advogado, comprometido a defender causa importante.
— Vejamos: o Bittencourt, segundo me consta, contraiu ultimamente uma dívida de gratidão com teu marido…
— Sim, creio que sim… O barão, ao que parece, interveio com muito empenho para que lhe dessem aquele belo emprego…
— Uma verdadeira sinecura.
— Mas… que tem isso?
— Tem tudo, filhinha; a moral fácil desses senhores proíbe-lhes que sejam amantes da mulher, desde que devam favores ao marido.
— Quer isso dizer que tais favores são pagos à custa do nosso amor próprio?
— E do nosso próprio amor: o sacrifício é todo nosso! Podem limpar a mão à parede com sua moral!
— Mas, por fim das contas, que devo fazer?
— Guerrear e vencer os escrúpulos tolos do teu amante! Para isso é indispensável que ele te escreva. Verba volant, scripta moment.
— Não sei latim.
— Quero dizer que nenhum homem, por mais inteligente, soube até hoje redigir uma epístola de amor sem se compromete. Na sua carta o Bittencourt fatalmente renovará promessas, e o seu cavalheirismo — o seu cavalheirismo pelo menos — o obrigará a cumpri-las. E quando o vires de novo rendido a teus pés, manda-o passear; não nos convém esses amantes que fazem pose da sua falsa dignidade.
— Mas por amor de Deus, viscondessa! Não lhe acabo de dizer que as minhas cartas tem ficado sem resposta?
— A que lhes vai escrever agora não ficará sem ela. Tenho um ardil que há tempos empreguei com ótimo resultado. Vem cá, acompanha-me.
A doutora levantou-se e dirigiu-se para um gabinete contíguo. A baronesa acompanhou-a.
— Senta-te, e escreve o te vou ditar.
No dia seguinte o Bittencourt recebia este bilhete:
Tenho-lhe escrito três cartas, e de nenhuma recebi resposta. Não me queixo, perdoo: o senhor deve andar muito preocupado com o seu novo emprego, e há momentos, parece, em que todo o homem honesto é obrigado a sacrificar os seus afetos aos deveres e às responsabilidades da vida prática. Paciência. Entretanto, como o senhor agora já deve estar mais folgado, tem por fim esta carta pedir-lhe a resposta das outras. — Sua quand même, L.
Post-scriptum — Há aqui no meu bairro grande dificuldade de obter selos do Correio, e, para evitar suspeitas, não quero mandar buscá-los à cidade. Peço-lhe que, com os cinco mil-réis que inclusos encontrarás, compre cinquenta selos de tostão, e nos remeta dentro da sua carta quando me responder. — Sua L.
E ali está como o Bittencourt voltou, forçado por uma nota de cinco mil-réis!

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)