“Amor de Maria” – Bernardo Guimarães
Amor de Maria
O Procurador, cruzando os braços, cravou os olhinhos verdes no carão do velho Estêvão. Depois, com um sorriso entre sardônico e triste, começou:
— Ainda me lembra a Mariquinha, como se a estivesse vendo. Tão profunda foi a impressão deixada no meu espírito pela desgraça de que foi autora e vítima ao mesmo tempo a afilhada do tenente-coronel Álvaro Bento, a mais gentil rapariga de Vila Bela! Era uma donzela de dezoito anos, alta e robusta, de tez morena, de olhos negros — negros, meu Deus! —, de cabelos azulados como asas de anum! Era impossível ver aquele narizinho bem-feito, aquela mimosa boca, úmida e rubra, parecendo feita de polpa de melancia, as mãozinhas de princesa e os pés da Borralheira, impossível ver aquelas perfeições todas, sem ficar de queixo no chão, encantado e seduzido!
Quem nunca viu a afilhada do Álvaro Bento (à boca pequena, se dizia ser sua filha natural) não pode ajuizar das graças daquela moça, que transtornava a cabeça a todos os rapazes da vila, obrigava os velhos a tolices inqualificáveis e deixava no coração dos que passavam por Vila Bela uma lembrança terna, um doce sentimento, um desejo vago. Quando nas contradanças a moça embalava brandamente os quadris de mulher feita e os seios túrgidos tremiam-lhe na valsa, um murmúrio lisonjeiro enchia a casa, era como um encanto mágico que percorria os ares, prendendo com invisível cadeia os corações masculinos aos passinhos miúdos da feiticeira. Feiticeira, sim, e não como a do Paranamiri, abjeção do sexo, do poder fantástico e, com licença, compadre Estêvão, inadmissível ante a boa razão e a lógica natural: mas com um poder real, um elixir perigoso que tonteava e ensandecia, transformando a gente em coisa sem vontade, pela demasiada vontade que dava! Pena é que a Mariquinha não se julgasse bem armada com o feitiço de seus inolvidáveis encantos e se valesse de crendices tolas e de meios aconselhados pela ignorância, de mãos dadas com a superstição.
Vila Bela é antes uma povoação do que uma vila. Três pequenas ruas em que as casas se distanciam dez, vinte e mais braças umas das outras se estendem, frente para o rio, sobre uma pequena colina, formando todo o povoado. No meio da rua principal, a capelinha que serve de matriz ocupa o centro de uma praça, coberta de mata-pasto, onde vagam vacas de leite e bois de carro. Quando eu lá morava, as famílias da vila entretinham as melhores relações, e não acontecia o que agora se dá em quase todas as nossas povoações, onde os habitantes são inimigos uns dos outros. A maldita política dividiu a população, azedou os ânimos, avivou a intriga e tornou insuportável a vida nos lugarejos da beira do rio.
Depois que o povo começou a tomar a sério esse negócio de partidos, que os doutores do Pará e do Rio de Janeiro inventaram como meio de vida, numa aldeola de trinta casas as famílias odeiam-se e descompõem-se, os homens mais sérios tornam-se patifes refinados, e tudo vai que é de tirar a coragem e dar vontade de abalar destes ótimos climas, destas grandiosas regiões paraenses, ao pé das quais os outros países são como miniaturas mesquinhas. Sem conhecerem a força dos vocábulos, o fazendeiro Morais é liberal e o capitão Jacinto é conservador. Por mim, entendo que era melhor sermos todos amigos, tratarmos do nosso cacau e da nossa seringa, que isso de política não leva ninguém adiante e só serve para desgostos e consumições. Que nos importa que seja deputado o cônego Siqueira ou o doutor Danim? O principal é que as enchentes não sejam grandes e que o gado não morra de peste. O mais é querer fazer da pobre gente burro de carga, vítima de imposturas! Mas deixemos isto que é alheio à história da Mariquinha, e que só veio a pelo para salientar a diferença dos tempos, pois que, em Vila Bela, reinava outrora a melhor harmonia entre os habitantes e a maior cordialidade nas relações familiares.
Mariquinha quase nunca estava o dia inteiro na casa do padrinho. Choviam convites para passar o dia em casas amigas, e um dos maiores trabalhos da moça era distribuir o tempo de modo a não criar descontentamentos. Tão agradável era a sua companhia, que as próprias companheiras bebiam os ares pela afilhada do tenente-coronel!
Desde que chegara aos quatorze anos, começara a moça a ser pedida em casamento e aos dezoito recusara nove ou dez pretendentes, coisa admirável numa terra de poucos rapazes solteiros. Entre os namorados sem ventura, posso apontar o tenente Braz, o capitão Viriato e o doutor Filgueiras, que nem por isso era o menos caído. Se a interrogavam sobre a razão de um procedimento pouco comum às moças pobres, a Mariquinha tinha um sorriso adorável dizendo:
— Ora, não tenho pressa.
Assim plácida e feliz corria aquela existência. Querida e festejada de todos, era a princesa do Parintins, o beijinho das moças, a adoração dos rapazes, a loucura dos velhos, a benevolência das mães de família. O único defeito que lhe imputavam as amigas era a faceirice. E tinha na verdade esse pecado, se pecado é em moça bonita, pois que eu, com esses cabelos de sal e pimenta, morro pelas raparigas faceiras.
Em dezembro de 1866, veio o filho do capitão Amâncio de Miranda passar o Natal com o pai em Vila Bela. Lourenço, assim se chamava o rapaz, fora em pequeno estudar ao Maranhão, e de lá voltando empregara-se na alfândega do Pará. Pela primeira vez voltava a Parintins, depois que de lá saíra. Oxalá não tivesse voltado nunca!
O filho do capitão Amâncio era um rapaz alto e louro, bem-apessoado. Imaginem se devia ou não agradar às moças de um lugarejo, em que toda a gente é morena e baixa. Acrescia que Lourenço tinha uns modos que só se encontram nas cidades adiantadas, vestia à última moda e com apuro, falava bem e era desembaraçado. Quando olhava para algum dos rapazes da vila, através de sua luneta de cristal e ouro, o pobre matuto ficava ardendo em febre. Demais, chegara do Pará, sabia as novidades. Criticava com muita graça os defeitos das moças. E montava a cavalo com uma elegância nunca vista, e que eu (apesar de já ter estado no Pará, no Maranhão e na Bahia) não podia deixar de admirar.
Foi um acontecimento a chegada do Lourenço de Miranda. O capitão Amâncio, todo orgulhoso, apresentou-o logo à metade da população. Toda a gente era obrigada a fazer-lhe elogios, posto que a muitos não agradassem aqueles modos petulantes, que pareciam dizer — Vocês são uns bobos! Quem se saiu com essa, em primeiro lugar, foi a espirituosa Mariquinha, que o vira pela primeira vez à missa do Natal, mas que, coitada! logo depois foi castigada pela liberdade com que falara do homem, cuja vida seria ligada ao seu destino.
Quatro dias depois da missa do Natal a afilhada do Álvaro Bento e o filho do capitão Amâncio encontravam-se de novo, num passeio que deram as duas famílias e mais algumas pessoas gradas ao lago Macuranim. Eram do bando, além da gente do Amâncio e do Bento, o Dr. Filgueiras, o juiz municipal, a filha e duas sobrinhas e o padre vigário.
Seriam dez horas da manhã quando a comitiva atravessou a linda campina que se estende diante do cemitério e internou-se nas matas que cercam a pitoresca Vila Bela. O caminho para o Macuranim é uma estreita vereda, toda por baixo de árvores. Os araçazeiros, os maracujás, as goiabeiras, os caramurus, entrelaçando os galhos, formam uma abóbada de verdura. As folhas secas, que lastravam o chão, estalavam sob os pés dos transeuntes, e os bem-te-vis, os titipururuis, os alegres e farsantes japiins encantavam o ouvido com a sua vária melodia. De vez em quando, o leve murmúrio de algum regato, oculto entre moitas de flores silvestres, confundia-se com as diversas vozes da floresta dominadas pelo assovio agudo do urutaí, ao longe, na densidão do mato.
À sombra de cajueiros folhudos, matizados de encarnado, chora a juruti solitária, e responde-lhe a gargalhada zombeteira da maritaca. Um perfume forte, um grande cheiro de flores e de frutas punha na alma uma disposição alegre de correr e de brincar pelas campinas, de mastigar folhas verdes, devagar por entre os troncos cheios de seiva estival de dezembro, de se deixar queimar ao sol matutino, cujo ardor a brisa da floresta refrescava.
As moças entregavam-se francamente à embriaguez no mato. Corriam à caça de maracujás, dourados e cheirosos, de cajus irritantes, de caramurus doces como mel, de goiabas verdoengas, provocadoras, cujos carocinhos rubros avivam-lhe a cor dos lábios. Os homens, perdendo a gravidade, conversavam em voz baixa, salgando a despreocupada palestra com gargalhadas picantes e brejeiras. O vigário ia atrás de todos, afugentando com o lenço os bois que repousavam à beira do caminho.
Lourenço ia à frente do bando, procurando entreter conversa com a afilhada do Bento, que por faceirice lhe escapava, ora para esconder-se atrás de uma moita de flores, ora para trepar com pasmosa agilidade às goiabeiras, entre risadinhas gostosas. A filha do juiz municipal dizia de vez em quando entre dentes:
— Esta Cotinha! Mas que faceirice!
Depois de meia hora de caminho, avistaram o Macuranim cercado de palhoças de pescadores. As aningas da beirada deixam cair no lago as folhas de diversas cores, e em alguns lugares o escondem completamente. As brancas flores da batatarana e outras de variegado colorido boiam à tona da água aninhando rolas e jaçanãs. A trechos, o peixe-boi bota fora a cabeça escura, buscando o capinzinho da margem, as pescadas e os tucunarés em rápida rabanagem vêm respirar o ar cálido do meio-dia enrugando de leve a superfície calma do Macuranim.
Foi ali, à beira desse tranquilo e pitoresco lago, formado por águas do Amazonas, que o capitão Amâncio e os amigos passaram aquele formoso dia, de fins de dezembro, que tão fatal devia ser à faceira Mariquinha. Os galanteios de Lourenço, as suas maneiras delicadas, a excitação da vaidade pela emulação provocada pela filha do juiz, despertaram no coração da afilhada do Álvaro Bento uma paixão profunda. A primeira revelação desse sentimento teve-a Mariquinha no despeito intenso causado pelas manobras da filha do juiz para apoderar-se da atenção do Lourenço de Miranda. Este, depois de ter se ocupado quase toda a manhã de Mariquinha, como por uma rápida mudança pôs-se a trocar amabilidades claras com a filha do juiz, petulante trigueirinha de vinte anos.
Na volta para a vila, a afilhada do Bento já não corria, já não trepava às árvores, não ocultava mesmo a tristeza que se apoderara de seu coração. Vinha séria ao lado do padrinho, mas não tirava os olhos de Lourenço e da filha do juiz, que andavam desta vez atrás de todos, conversando, rindo, perseguindo borboletas como duas crianças. Mariquinha detinha os passos para acompanhar os movimentos dos dois jovens, dolorosamente ferida pelo que, no íntimo, chamava inconstância de Lourenço. Poucas horas havia que o moço se mostrara apaixonado por ela e agora namorava às claras a Lucinda, a filha do juiz, a moça mais feia de Vila Bela. Forçoso era crer na volubilidade dos moços do Pará, de que tanto lhe falara a sua ama de leite, a boa Margarida. Com a alma ulcerada pelo ciúme e espezinhada na vaidade de moça bonita, sempre até ali preferida, Mariquinha caminhava em silêncio, afetando fadiga. Quando chegaram à vila, despediram-se uns dos outros à porta do tenente-coronel. Lourenço ainda continuou na companhia da família do juiz, e Mariquinha seguiu-o com o olhar até que o grupo se escondeu por detrás da igreja. Quando a moça voltou-se para entrar em casa, o padrinho a observava:
— Ora vamos, Maria, então que é isso? — perguntou meio zangado.
— Nada, não senhor — respondeu ela, e correu a esconder a vergonha e desespero no seio da boa Margarida, que debalde tentou enxugar-lhe as lágrimas com consolações sensatas.
Aquele amor rápido e profundo, feito talvez de muitos sentimentos contrários, produziu-lhe grande mudança nos hábitos, nos modos e no gênio. Vivia triste e aflita, vítima indefesa de uma paixão ardente, de uma dessas paixões que a gente só admite nas novelas, mas que também existem na vida real, principalmente entre as mulheres de nossa terra, impressionáveis em extremo. A moça passava dias sem comer, noites sem dormir, e quando alguma nova proeza do rapaz vinha lhe matar alguma pequenina esperança que alimentara no intervalo, chorava, e chorava no seio da Margarida, de sua querida mãe preta.
Porque Lourenço de Miranda era um desses moços que julgam ser-lhes tudo permitido. Acostumado aos namoros fáceis do Pará, pensava que em Vila Bela, na vida estreita da aldeia, podia impunemente brincar com o sentimentalismo das raparigas, sem refletir que as nossas moças não estão como as da cidade, fartas de ouvir galanteios nos passeios e nos bailes. As daqui tomam tudo a sério, acreditam em tudo. Lourenço, porém, pouco se lhe dava do que resultasse. Vivia alegre, gozando a licença, namorando claras e trigueiras, declarando o seu amor às caboclinhas do peito duro e às moças de família, franzinas e pálidas.
Uma vez, entretanto, Mariquinha julgou que alcançaria vitória. Foi numa tarde de janeiro, quente e linda, quando se encontraram no sítio da Prainha. Tinham ido algumas famílias a banho naquela saudável praia. Felizmente não estava a Lucinda, presa em Vila Bela por um defluxo rebelde, que mais a afeava. O fato foi de bom presságio. Mariquinha, que fora a contragosto ao passeio, sentiu intensa alegria.
Lourenço esteve adorável de paixão e de sentimento, e a afilhada do Álvaro Bento contou uma hora de completa felicidade no meio de tantas amarguras. Apesar de cercados pela vigilância suspeitosa de amigos e parentes, conseguiram encontrar-se a sós por um momento, sob a copa frondosa de um taperabá, à beira do rio. Lourenço perguntou o motivo da tristeza que todos lhe notavam, foi terno, solícito e amante. Disse que era a moça mais formosa da vila, e que no Pará, mesmo naquela grande cidade, tão rica em mulheres bonitas, jamais viu formosura igual. Que o seu maior desejo era possuí-la toda para si, porque a amava como nunca poderia amar e morreria, certamente, se não fosse correspondido.
— E a Lucinda? — perguntou a moça radiante de amor e de felicidade.
A Lucinda era uma tola à custa de quem gostava de divertir-se. Só a Mariquinha amava, só de Mariquinha sentia separar-se, quando se esgotasse o tempo da licença e tivesse de voltar a tomar o seu lugar na alfândega.
Mariquinha sentia a felicidade inundar-lhe a alma, o seu coração abria-se às mais lisonjeiras esperanças, os olhos brilhavam com um fulgor que embriagava a Lourenço. Todos os pesares da moça desvaneceram-se de súbito, as noites de insônia e os dias dolorosos foram esquecidos. O carmim tingiu-lhe as faces descoradas. O tronco do grande taperabá protegeu o primeiro e único beijo que trocaram aqueles dois amantes. No dia seguinte, Mariquinha amanheceu cantando, o que surpreendeu a todos de casa, menos à velha Margarida, que durante a noite ouvira a história do passeio à Prainha. Passou a moça o dia alegre e contente, mas à noite esperava-a uma decepção horrível.
Reunidos em casa do capitão Amâncio, para um jogo de prendas, Mariquinha e Lucinda acharam-se frente a frente. Lourenço, por uma inexplicável contradição, foi todo atenções e desvelos para a filha do juiz, sem se importar com o despeito visível daquela a quem na véspera jurara um sincero amor. Lourenço e Lucinda, ao abrigo das liberdades do jogo, trocaram abraços e beijos, galanteios recíprocos à vista de todos, enquanto Mariquinha ralava-se de ciúmes e de raiva, reduzida a ouvir as amabilidades insulsas do Dr. Filgueiras. A formosa moça retirou-se cedo e, quando chegou a casa, rompeu num pranto soluçado que terminou por um vagado de três horas.
Mariquinha achava-se deitada na rede alva de linho com ricas varandas de rendas encarnadas, mas não dormia. Ia já alta a noite. O quarto, fracamente alumiado por uma candeia de azeite de mamona, mostrava indecisamente o contorno dos objetos e das pessoas que continha. Pelos vãos das telhas, penetrava a aragem fresca da madrugada, embalsamada pelos odores da floresta e repassada da umidade do rio, cujo murmúrio brando se percebia no silêncio da vila. Nos outros aposentos da casa todos dormiam. Mariquinha, com os olhos semicerrados, com o corpo negligentemente estendido, pondo para fora da rede uma perna admiravelmente torneada, de um moreno-claro acetinado, no abandono do repouso recatado, estava silenciosa. O seu rosto estava pálido, da cor da alva camisola rendada que lhe cobria o corpo e que o arfar agitado dos seios soerguia a trechos.
Sentada no chão, a velha Margarida embalava de mansinho a rede e falava baixinho, baixinho, para que ninguém ouvisse senão a sua querida filha. Esta, porém, só na ânsia que o cabeção rendado revelava mostrava estar ouvindo.
A mãe preta dizia:
— E mesmo perto da Prainha, e na beira do Lago da Francesa… é uma tapuia velha, muito afamada…
Parou, para tomar do cachimbo, enchê-lo de tabaco, e continuou. A sua voz quase parecia um sopro. Mariquinha, imóvel, permanecia em silêncio:
— E um tajá… é remédio que não falha. Basta uma dose de colherinha de chá.
Ergueu-se a mãe preta. Foi acender o cachimbo à lamparina e, no aspirar a fumaça do cheiroso tabaco, apagou a luz. Disse com um gesto de impaciência:
— Ora bom. Se apagou a luz. Mas não faz mal, já está amanhecendo.
De fato, uma claridade tênue passava pelos vãos das telhas. Um galo cantou no quintal e na vizinhança outro galo respondeu.
A velha apertou com os dedos o tabaco aceso, para que pegasse melhor o fogo. Soltou duas longas baforadas e veio de novo sentar-se ao pé da rede. Mariquinha levara a mão ao peito, como para comprimir as pulsações do coração.
A mãe preta continuou.
— Não se pode duvidar. É remédio que não falha. Por que é que o capitão Amâncio ficou-se babando pela velha Inácia? Está claro que, sendo ela velha e feia, só podia ser por feitiço. E o senhor mesmo, seu padrinho, como foi que ficou tão agarrado à defunta Miquelina? Era preciso que eu não fosse de casa, para não saber? Pois se fui eu mesma quem arranjou o tajá. A defunta andava chorando, chorando, não comia nem bebia, por ciúmes da Joaninha Sapateira. Arranjou-se o tajá… e foi uma vez a Joaninha Sapateira. Nunca mais o senhor quis saber dela, e era só Miquelina para cá, Miquelina para lá, até que lhe deu aquela dor de peito que a matou, coitadinha!
Mariquinha fez um movimento para recolher a perna e soltou um fraco gemido.
A velha resmungou:
— Arre, minha gente, basta de choradeiras. É experimentar que se bem não fizer, mal não faz.
***
Passara-se uma semana. Uma tarde, entre várias pessoas que estavam tomando o fresco à porta do tenente-coronel Álvaro Bento, achava-se o filho do capitão Amâncio de Miranda, que viera despedir-se. A sua licença estava a esgotar-se. Dentro de três dias era esperado de Manaus o vapor que o havia de levar ao Pará, deixando muitas saudades em Vila Bela.
Quando Lourenço chegara, havia-se acabado de servir café às pessoas presentes. Um mulatinho do serviço ainda estava com a bandeja de xícaras vazias na mão.
— Moleque — disse o tenente-coronel — dize lá dentro que mandem uma xícara de café para o Sr. Lourenço.
O rapazinho foi dar o recado à velha Margarida. A mãe preta correu ao quarto de Mariquinha e disse-lhe ao ouvido:
— É agorinha.
Mariquinha foi à gaveta da cômoda buscar o tajá que a Margarida havia na véspera trazido do Lago da Francesa, e que, absorvido em pequena porção pelo filho do capitão Amâncio, devia deixá-lo louco de amores pela pessoa que lho ministrasse. Ela mesma ralou uma porção de raiz em uma língua de pirarucu. Tomou uma colherinha, encheu-a com o resíduo obtido, misturou-o com açúcar e depositou-o numa xícara de café que lhe trouxera a mãe preta.
Chamou o moleque e disse:
— Aqui está o café para o Sr. Lourenço.
Custa-me a acabar esta triste história, que prova quão perniciosa é a crença do nosso povo em feitiços e feiticeiras. O tajá inculcado à pobre moça, como infalível elixir amoroso, é um dos mais terríveis venenos vegetais do Amazonas.
Lourenço, ao tomar o café, coitado! bebeu-o de um trago, sentiu fogo vivo a abrasar-lhe as entranhas. Deitou a correr pelas ruas como um louco. Meia hora depois, falecia em convulsões medonhas, com o rosto negro, e o corpo abriu-se-lhe em chagas.
Que mais vos direi?
A velha Margarida, interrogada pelo delegado de polícia, revelara a sua participação inconsciente naquela horrenda desgraça que aterrou a vila. A tapuia do Lago da Francesa morreu na cadeia, de maus-tratos.
Quanto à formosa e infeliz Mariquinha, desaparecera de Vila Bela, sem que jamais se soubesse o seu paradeiro. Ter-se-ia atirado ao rio e confiado à incerta correnteza aquele corpo adorável, tão desejado em vida? Ter-se-ia internado pela floresta para perder-se na solidão das matas? Quem jamais o pôde dizer?
Hoje, dos seus infaustos amores só resta como lembrança em Vila Bela o nome de Amor de Maria, dado pelo povo ao terrível tajá que matou o filho do capitão Amâncio.