“A divina inveja” – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)
A divina inveja
Sempre que tenho uma sensação agradável em companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo, deles.
A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazer-me notar isso seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.
Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu – de alterar, mentindo – o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente – e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.
Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquiteto muito mais.
Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais – curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar.
O meu triunfo máximo no gênero foi quando, a certa hora ambígua de aspecto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade…
Texto publicado em Livro do Desassossego