“A canção da cerejeira” – Guerra Junqueiro
A canção da cerejeira
Disse Deus na primavera: “Ponham a mesa às lagartas!” E a cerejeira cobriu-se imediatamente de folhas, milhões de folhas, fresquinhas e verdejantes.
A lagarta, que estava dormindo dentro de casa, acordou, espreguiçou-se, abriu a boca, esfregou os olhos e pôs-se a comer tranquilamente as folhinhas tenras, dizendo: “Não se pode a gente despegar delas. Quem é que me arranjou este banquete?”
Então Deus disse de novo: “Ponham a mesa às abelhas!” E a cerejeira cobriu-se imediatamente de flores, milhões de flores delicadas e brancas.
E a abelha matinal aos primeiros raios da aurora pousou sobre elas, dizendo: “Vamos tomar o nosso café; e que chávenas tão bonitas em que o deitaram!”
Provou com a linguita, exclamando: “Que deliciosa bebida! Não pouparam o açúcar!”
No verão disse Deus: “Ponham a mesa aos passarinhos!” E a cerejeira cobriu-se de mil frutos apetitosos e vermelhos.
“Ah! ah! exclamaram os passarinhos, foi em boa ocasião; temos apetite, e isto dar-nos-á novas forças para podermos cantar uma nova canção.” No outono disse Deus: “Levantai a mesa, já estão satisfeitos.” E o vento frio das montanhas começou a soprar, e fez estremecer a árvore.
As folhas tornaram-se amarelas e avermelhadas, caíram uma a uma, e o vento que as lançou ao chão erguia-as novamente, fazendo-as esvoaçar.
Chegou o inverno e disse Deus: “Cobri o resto!” E os turbilhões dos ventos trouxeram a neve, sob cuja mortalha tudo dorme e descansa.
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)